quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Ilha da Trindade III



A Rotina
                                                 


            O tempo passava lentamente naquele inóspito pedaço de terra no meio do Oceano Atlântico, e seu contingente humano já se ressentia do isolamento a que estava submetido. Alguns homens se mostravam soturnos, arredios, enquanto outros com expressões graves e de barbas crescidas não escondiam a apatia que lhes envolviam. Quando o sol dava lugar ao crepúsculo (hora do banzo) a nostalgia assomava a todos nós e cada um tinha a sua maneira de viver àquelas horas tão marcantes. Era o momento de descer ao rancho, e pra chegar lá saindo do alojamento, seguia-se por uma pequena descida de nome Chora na Rampa. Jantar simples e cardápio repetitivo mantinham o pequeno grupo no mais completo mutismo. O silêncio só era quebrado com o encontro de pratos e talheres. Cada sargento, cabo ou marinheiro naquele jantar singelo, guardava consigo suas preocupações que ficaram no continente. Quando larguei do Rio Janeiro rumo à Trindade deixei a minha família; mulher e dois filhos sendo a caçula com três meses de idade. Outros companheiros também tinham suas preocupações e com isso o ambiente era de desânimo e de recolhimento. À noite, eu procurava ler o que trouxe do Continente e rotineiramente anotava o que tinha feito durante o dia. Na sala de lazer, jogos de salão como Damas, Tênis de Mesa e Xadrez, ajudavam a passar o tempo, mas o Aliado ( jogo que se pratica com dados) era o mais procurado isto por ser inventado na Marinha de Guerra. O importante naquela oportunidade era fazer alguma atividade, manter-se ocupado a exemplo de Robinson Crusoé do romance de Daniel Defoe, que viveu por muitos anos numa ilha deserta no mais triste isolamento.  Assim a gente pescava, jogava futebol e fazia caminhadas para ocupar o tempo; até atividades amenas como trabalhos artesanais e pintura com areias coloridas. A pintura que me refiro é uma técnica desenvolvida na ilha que consiste em misturar areia em tinta que depois de seca e peneirada adquire a cor desejada e daí aplicada com cola em telas.          A areia preta não passa por esse processo, mas é encontrada In Natura na Praia do EME no noroeste da ilha. A característica principal da areia preta é que ela é um minério de ferro com forte teor de magnetismo em sua constituição. Com essas e outras atividades o tempo seguia o seu curso lento e rotineiro. Um passatempo que se tornou prazeroso era a pesca do Xarel no local denominado Parcel, distante do Posto cerca de quatro quilômetros. Para chegar lá era uma verdadeira maratona escalando encostas e blocos de pedras e o que era mais cansativo, atravessar as areias da Praia das Tartarugas. Éramos um grupo de cinco pessoas invariavelmente, todas equipadas de anzóis e iscas de sardinha pescadas na praia da Calheta. A praia do parcel como era conhecida, não era apropriada ao banho, tinha muitos escolhos de portes variados formando o nosso pesqueiro um ponto extremamente perigoso. A pesca era proveitosa: entre peixes de pequeno porte à Xaréus e Garoupas de dez a vinte quilos. Quando a maré estava cheia, as ondas arrebentavam nos arrecifes com muita violência obrigando a nós pescadores procurar um lugar mais seguro. Se a ressaca do mar continuava, o grupo cautelosamente empreendia a volta ao Posto. Nesse lado da ilha fica o Pico do Paredão com 217 metros de altura, onde em sua base tem um túnel feito pela natureza com cerca de quarenta metros de extensão mostrando o mar do outro lado. Esse túnel teria aproximadamente oito metros de diâmetro.
            Na Trindade existem coisas curiosas dignas de reflexão, especificamente no que diz respeito ao mar com a aproximação do homem na beira da praia. Certo dia, eu e um companheiro tentamos dar a volta na base do Paredão aproveitando a maré baixa para ver a saída túnel do outro lado. O mar estava liso sem ondas, como dizemos um mar espelhado. Da plataforma onde estávamos para a linha dágua daria sem dúvida dois metros de altura, e de repente o mar baixou mais ainda e em seguida toda a massa dágua cresceu chegando a alagar a plataforma onde a gente caminhava. Era como se tivesse vida, era como quisesse nos arrebatar para suas profundezas. O pavor desmedido foi o combustível que nos tirou imediatamente daquele lugar.  Sem entender aquela mudança abrupta empreendemos a volta imediata para a nossa base.
            Por mais de cinqüenta dias, já familiarizado com tudo que a Ilha oferecia, o tédio foi cedendo ao otimismo e a alegria de viver num lugar tão rude e de beleza indomável.
                                                     

                                                 
Sou Licença
(Segunda Parte)



            No começo de Junho, era grande a expectativa ante a chegada do navio abastecedor que traria com sua carga principal, noticias e encomendas dos familiares. A vinda de gente nova era outro fator de alegria, que dava a gente com mais de sessenta dias reclusos no meio do Oceano Atlântico. Escusado é dizer do reboliço e contentamento no desembarque da nova turma. Os novatos vindos do Continente, de traços urbanos, cabelos rentes e de rostos imberbes, contrastavam com os Insulares de barbas crescidas e peles trigueiras esbanjando vitalidades já adquiridas do clima da Ilha.   Recebi uma caixa de madeira contendo cartas, revistas, e um gravador de Fita k7 com uma mensagem gravada de minha esposa. Foi um momento muito alegre saber que tudo andava bem com os meus lá no Rio de Janeiro.
           Quando o navio largou levando parte da turma que completou quatro meses na Ilha de volta a terra, a minha Cabritada (turma) assumiu a antiguidade do POIT. É tradição a vésperas de uma turma retornar para o Continente se fazer uma despedida festiva com discursos, trocas de presentes, menções de feitos relevantes e para culminar com o evento, é feita a cerimônia de passagem do Bastão de Comando. O oficial que deixa a Ilha, solenemente passa o Bastão Sou Licença ao oficial que fica, e este erguendo o Bastão exclama alto e bom som:- Eu Sou Licença! Ironicamente faltando mais de sessenta dias para um navio vir buscar a turma. Enquanto nós que estávamos ambientados no Posto, enchia de perguntas aos novatos sobre o Rio, o que aconteceu de vulto na cidade e até notícias do mundo, em contrapartida os novatos faziam perguntas sobre a Ilha. Naquela época não tinha Televisão no POIT e o Rádio mal sintonizava uma estação. Somente uma emissora do Brasil pegava bem durante a noite naqueles confins; a rádio que ficou célebre no país inteiro quando o locutor com voz empostada anunciava:- Pernambuco falando para o mundo, emissoras...
            Aos recém-chegados era passado tudo que aprendemos nos últimos sessenta dias, assim como ganhamos as experiências da turma que se foi. Por exemplo, o trato com os caranguejos torna-se uma lição básica uma vez que eles povoam toda a área habitada. Aos milhares infestam alojamentos, rancho, carpintaria até gavetas de armários etc., e quem anda pela primeira vez nos estreitos caminhos do Posto se assusta com aquele imenso tapete de crustáceos que não se intimidam á nossa passagem. Ensinamos aos novatos que passar por cima deles é uma questão puramente normal. O aparecimento de milhares deles ocorre principalmente após um Pirajá que são chuvas inopinadas que caem a partir de maio. Segundo o chefe da Estação Metereológica do POIT, são as chamadas chuvas orográficas, ou chuvas de relevo formadas na própria Ilha e que aqui mesmo se precipitam.
            Os pontos mais famosos como Praia da Galheta, das Tartarugas, Praia das Cabritas, do Príncipe e Praia do EME e a praia dos Portugueses onde fica o POIT, é tudo mencionado para quem chega. È mencionado também os picos que se destacam na paisagem da Ilha com pouco mais de 8.3 quilômetros quadrados abrigando treze montes de expressivas altitudes, um deles passando dos 600 metros; o Pico do Desejado o ponto culminante da Trindade.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Ilha da Trindade II

Ilha da Trindade II



O Perímetro Habitado


             
              Todas as construções do POIT (Posto Oceanográfico da Ilha da Trindade) são de madeira que abrigam casas do Comando e do Imediato, enfermaria e alojamentos, prédio do rancho e estação rádio, casa de força (Usina Diesel Elétrica), Rádio Sonda (Estação Metereológica) e Carpintaria que ficam numa faixa estreita de dois quilômetros limitada pela praia e a encosta dos morros. Quando estive lá em 1978, não existiam casas de alvenaria; todas as construções eram de madeira. O trânsito entre esses prédios era feito nas estreitas ruas cimentadas, com pouco mais de um metro e meio de largura. Na Trindade faltava tudo que tinha em uma cidade do continente, como carros, lojas, padaria, botecos etc., multidão ansiosa pra chegar a seu destino, postes e luminosos vendendo a marca de um produto; o grito desvairado do ambulante na informalidade. Na Trindade o silêncio é tão presente só quebrado com as ondas se precipitando sobre as pedras na praia.
            Nos primeiros dias já instalados, o Imediato do posto, promoveu uma reunião com os recém-embarcados e apresentou algumas instruções básicas de como proceder na Ilha, por exemplo: não se afastar da área habitada sem um companheiro de lado e quando o fizer informar o destino, levar sempre em seu poder uma peça de cabo, lanterna e faca de marinheiro. Nunca, sob-hipótese alguma, andar descalço na ilha. Um eventual ferimento em membro da guarnição complicaria bastante a permanência dele no posto, embora existisse uma enfermaria para atender emergências e pequenas cirurgias. Em casos mais graves, o socorro teria que vir do continente a 1200 quilômetros.




                                                            O comando do POIT
                                                 

                                                      

            A presença militar na Ilha da Trindade garante ao Brasil a posse do território insular. A ilha com pouco mais de oito quilômetros quadrados ocupa uma posição estratégica no Atlântico Sul. Foi descoberta em 1501 pelo espanhol João da Nova a serviço da Coroa portuguesa. Foi visitada por celebridades como o capitão James Cook e o astrônomo Edmund Halley. Pertenceu à Inglaterra, até fins do século XIX, mas por via diplomática em um Tribunal Internacional, o Brasil ficou com a posse definitiva de Trindade. O posto tem no comando um Capitão de Corveta do corpo da armada da Marinha de Guerra do Brasil e como Imediato, um oficial do corpo médico, sabiamente indicado pelos escalões superiores da Armada.
            Com o advento do ano geofísico internacional em 1957, nasceu o Posto Oceanográfico da Ilha da Trindade, POIT. Funciona em sua estrutura uma estação rádio telegráfica – PWH3 – e estação de meteorologia que coleta dados atmosféricos e os envia diariamente para a DHN.
                                                   


                                                           Primeira Incursão
                                  

            Os primeiros dias foram para reconhecimento das instalações e fazer novas amizades. O barracão do alojamento era dividido em dois compartimentos onde alojava sargentos e marinheiros e também uma sala de lazer com poucas opções de entretenimento. O expediente ia das 07h30 às 11h30. Não havia atividades no período vespertino e cada um escolhia o que melhor fazer.
            No meu caso, às 07h30 eu ia para a Casa de Força com meus dois auxiliares colocar os motores em funcionamento e fazer a manutenção nos demais equipamentos. O fornecimento de energia ia até às 14h, voltando a funcionar das 17h às 22h, quando então a ilha ficava as escuras até o início do expediente no dia seguinte. Era uma medida de economia adotada pelo comandante uma vez que a nossa cota de óleo diesel era de 5.000 litros até o próximo abastecimento, sessenta dias depois. Tínhamos na casa de força, uma câmara fria com capacidade para uma tonelada de carne sendo que as geladeiras do posto funcionavam a querosene a exemplo dos aquecedores de água para banho. O rancho funcionava em um barracão vizinho a carpintaria na Praça Nossa Senhora de Lourdes, padroeira da Ilha. Depois de quinze dias de permanência no posto, dava para sentir a ausência da vida agitada da cidade. Todo começo de uma cabritada (termo usado para o período de cinco meses), as refeições são normais tendo em vista o reforço de alimentos vindo do Rio de Janeiro, mas existia certo controle na distribuição, porque ao desembarcar na ilha, perde-se no mar boa quantidade de mantimentos ao transpor a arrebentação. Assim, dias pra frente o rancho perde quantidade e chega-se a cogitar um racionamento. Na minha cabritada, muita coisa foi tragada pelas ondas e boa parte que chegou a terra vinha totalmente encharcada de água.

 
            No início, o grupo fez as primeiras incursões fora do casario, pois ainda não havia passado dos limites das casas entre o rancho e a estação metereológica, em torno de dois quilômetros. Subimos uma encosta, cerca de cem metros de altura onde fica o cemitério local, com quatorze cruzes, referência aos que morreram na ilha, entretanto, são cruzes simbólicas. Na subida ao cemitério, muita beleza se apresentava a cada passo que se prosseguia nessa incursão. Dessa pequena elevação dava para observar o posto lá embaixo, com o casario todo branco. O solo em Trindade é extremamente acidentado onde nas partes mais baixas proliferam centenas de blocos de pedras de todos os tamanhos que certamente rolaram das partes mais altas em possíveis avalanches. A impressão que se tem é assustadora diante da diversidade de elementos a vista, assim como dos morros e picos gigantescos de expressivas altitudes. Para quem vinha de um aglomerado urbano como o Rio de Janeiro, tudo aquilo era um mundo novo, irreal.
            Completando a nossa missão exploradora, avançamos morro acima pelas trilhas íngremes até a gruta Nossa Senhora de Lourdes, beirando a duzentos metros de altitude e, confesso, foi o ponto que mais me chamou a atenção. A caverna é a maior dentre muitas que existem na ilha, tem cerca de trinta metros de profundidade e alturas internas variando de quatro a oito metros. Dentro dela a escuridão é predominante deixando a todos muito impressionados com o ambiente que se torna solene e austero, mas aos poucos a gente vai se envolvendo com a paz que envolve aquela gruta. No seu interior existe um tesouro; nada de baú com colares de pérolas e moedas de ouro, mas um pequeno acervo histórico como a imagem de Nossa Senhora de Lourdes e as inscrições feitas nas rochas pelos presos políticos do levante do forte de 1922. Entre os nomes gravados (pelos próprios) nas rochas está do então capitão Juarez Távora, militar do exército figura expressiva da política brasileira por mais de quatro décadas. Ainda no seu interior, guarda lembranças e mensagens das primeiras guarnições que passaram pela Ilha: são placas, quadros mensagens desenhadas e escritas e mensagens de agradecimentos à Santa, guardiã da Ilha por um milagre alcançado. Outra coisa que chama a atenção do visitante é uma fonte de água límpida que emerge das frestas das rochas e de sabor inigualável.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Ilha da Trindade I


      
                                                                   PRIMEIRA PARTE                

            No ano de 1976 concluí o curso de Aperfeiçoamento de Motores e Máquinas Especiais no Centro de Instrução Almirante Wandenkolk (CIAW), na Ilha das Enxadas e de lá embarquei no Contratorpedeiro Maranhão, D33 do Primeiro Esquadrão de CTs da Esquadra, o Fita Azul, que ostentava no passadiço, o símbolo ECO Barra, testemunho de sua eficiência no mar. Foi desse navio que tive a oportunidade de servir na Ilha Trindade como voluntário isso em 1978, sonho antigo que alimentava desde os tempos de Grumete. O embarque na Trindade era por um período de cinco meses, sem opção de dobrar. Fiquei concentrado na Ilha Fiscal, sede da Diretoria de Hidrografia e Navegação, cerca de dez dias com quinze companheiros recebendo informações com palestras valiosas como proceder na ilha.
            A Ilha da Trindade é a ultima porção de terra do Brasil a 1140 quilômetros de Vitória (ES) e a 2400 km da África; é lá que o Brasil começa, se baseando onde o sol nasce. Em 14 de Abril 1978 a Corveta Baiana larga do cais da DHN (Diretoria de Hidrografia e Navegação) conduzindo uma parte da guarnição da Ilha e começa uma viagem de três dias com o mar grosso e ventos fortes.
             Na corveta encontrei colegas que em outras oportunidades servimos juntos e, por isso fiz uma viagem tranqüila, porque a classe de navio me era familiar, pois já havia passado pelas Corvetas: Caboclo, Purus e Ipiranga. A estima de chegar à Ilha era para as dez horas da manhã do dia 17 de abril, entretanto, o mar muito picado concorreu para que o barco fundeasse às quatro horas da tarde. Antes de conhecer a Ilha eu não fazia idéia de como seria Trindade, mas ao chegar ao ponto de fundeio (Praia dos Portugueses), diante das rochas e paredões na minha frente e o tempo frio e nevoento que pairava no local, senti um forte temor. Aliado a essa apresentação, lembrei-me do que me passaram na DHN quanto ao desembarque para a praia, que seria por meio de uma Cabrita, nome dado a um pequeno batelão que “pulava” as ondas e que geralmente virava na arrebentação. Enfim, o desembarque foi feito sem maiores atropelos. Quando saltei na rampa fui apresentado ao sargento encarregado da Usina de Eletricidade, que seria a minha incumbência nos próximos cinco meses. O ambiente era de muito alvoroço e contentamento para os dezesseis homens que regressariam para o Rio como também para os demais que ficariam com a minha turma por mais dois meses. O sistema era assim: a metade da guarnição voltava para o Rio de Janeiro e a outra metade, com dois meses de experiência, ficava com a nova turma, servindo de guia nos meses seguintes.        A rampa na qual se procedia ao desembarque, se alargava em uma pracinha onde se via uns frondosos pés de Amêndoas e de coqueiros açoitados pelos ventos constantes.