sábado, 29 de dezembro de 2012

O Robalo



                                                       






              Um fato interessante aconteceu na CV. Purus com o navio atracado no porto de Salvador, BA isso em 1969.  É que os oficiais iam dar um jantar para uns amigos do Iate Clube de Salvador e que terminou numa tremenda lambança. Aliás, nem teve começo porque o elemento principal da festança virou esqueleto. Era um dia normal, quando a rotina foi alterada no final do expediente. A guarnição foi liberada mais cedo e instruídos os marujos que estavam a bordo para evitar o convés principal em uniforme de faxina. O Gestor e o “Fiel” de bordo entabularam conversas sobre o suprimento para o evento, pois seria um jantar diferenciado. O cozinheiro chefe, cabo Pepino, de vasta experiência em navios de elite e mesmo em restaurantes civis, era peça fundamental, pois das mãos dele sairia um prato considerado uma obra de arte. Seria um robalo ao forno regado a vinho branco e uma série de truques para o prato ficar mais saboroso.
            O rancho para a guarnição saiu no horário normal e boa parte do pessoal estava a bordo salvo, alguns heróis que vagueavam pela cidade preenchendo horas para retornar ao navio. Nesse contexto, dois marujos com pouco dinheiro nos bolsos tomavam um cafezinho requentado numa birosca da cidade alta, quando um deles comentou: - é bom a gente voltar pra bordo e tentar chegar na hora do rancho - ah, o Picado já saiu há muito tempo, quem sabe o mestre cuca deixou alguma coisa pra nós retardatários, retrucou o outro. É de conhecimento da marujada o fosso que separa os oficiais das Praças-de-Pré. Originalmente pelo RDM (Regulamento Disciplinar da Marinha) vigente, como também pela cultura histórica herdada da Marinha Imperial aonde os oficiais vinham das classes aristocráticas da sociedade. Qualquer evento no seio da oficialidade passava até mesmo despercebido entre nós marinheiros. Tudo muito natural. Para um simples jantar, criava-se uma atmosfera de poder e ostentação; acionava-se o mestre do navio para arrumar a escada do Portaló colocando as sanefas com o monogramo da CV. Purus mantinha-se o cozinheiro de sobreaviso assim como o despenseiro, cabo Remanso e o encarregado do Ar Condicionado (no caso o autor deste relato). A minha participação na historia era manter uma temperatura agradável nos camarotes e Praça D’armas. Escusado é dizer que no portaló, o pessoal de serviço envergava o uniforme branco. Lá pras sete horas o cozinheiro fez mais uma vistoria nos pratos que tinha preparado: saladas frias, canapés, bolinhos de atum e em uma travessa  Wolf aonde jazia um lindo Robalo. Sim, era um Robalo de uns três quilos deitado no centro da travessa com um olho esbugalhado, mas cercado de tiras de pimentão, rodelas de tomate e pequenas lascas de azeitonas pretas. Mal comparando, parecia um defunto no velório com o caixão aberto rodeado de flores. Satisfeito com a inspeção o mestre cuca colocou a travessa no forno para manter o peixe quente e mandou para a copa que ficava no piso superior contígua a Praça D’armas, as entradas e canapés e em seguida desceu para sua Coberta (Alojamento) descansar até ser chamado para tirar o jantar. Na copa o despenseiro se comunicava com a Praça D’armas por uma portinhola. Vinho Rosé tâmaras, passas e tudo pronto, tudo nos conformes.
Descendo a ladeira do Taboão um MN-QSM a passos largos dizia pra si: - acho que perdi o Rango, mas quem sabe ainda dá tempo. E olhava aflito para o relógio que trazia no pulso.  Na cidade baixa na confluência da ladeira do Julião com uma pracinha o marujo alcança os colegas que enganaram as barrigas com os cafezinhos requentados, e foi logo falando: - e aí, companheiro, perdemos o Rango? Dali prosseguiu o grupo em direção ao cais em marcha batida.
            No interior do barco a maioria do pessoal nas suas cobertas lendo alguma revista, outros deitados e alguns cochilando, reinava a mais completa calma e tranqüilidade. A festança seria ás dez horas e já às nove horas chega o primeiro convidado acompanhado de uma linda jovem bem maquiada, de um vestido vaporoso. O Contramestre atento manda o Ronda avisar na Praça D! Armas a presença do convidado. Chega um Tenente que se aproxima do casal com um sorriso largo e cheio de Mesuras a dizer - vamos entrando e virando a cabeça para trás, diz para o Contramestre - muita atenção no serviço, heim! Claro que o pessoal do Portaló ajudaria as Madames a subir a escada do navio.
            Os três retardatários entraram na cozinha pelo acesso de popa e sem muito trabalho viram que do rancho das cinco horas restara pouca coisa. Sobre uma das chapas do fogão uma terrina de alumínio tinha resto de arroz, duas Macas Ferradas, (bife muito popular nos navios de marinha) e uma porção de purê que mal dava para um homem. O cozinheiro dormia tranqüilo porque na hora certa seria chamado para Arrumar o Robalo. Mais dois convidados e três garotas subiram a bordo. Na Praça D’Armas em Avant-premiére degustavam–se vinhos e canapés, iscas de camarão e outros salgados. O vozerio que no início era discreto já se tornava mais acalorado. Mas o que importava mesmo era a opinião do dono da festinha: - dos frutos do mar o peixe ao forno é uma das melhores iguarias, vocês vão ver!  Às dez horas, o mais antigo faz um sinal ao Gestor que como um mestre de cerimônia diz aos presentes que o jantar vai ser servido, e sai em direção à copa para avisar ao Despenseiro. Este, incontinente desce dois lances de escada e já na coberta diz para o cozinheiro: – está na hora! O Chief concorda e segue rumo à cozinha. Na Praça D’armas o clima é de descontração e uma das garotas antes comedida já ensaiava uma continência com um quepe esquecido em um divan. Claro que a jovem tomou uns drinks, não lembrava quantos. E o Despenseiro na copa se virava com os frios, vinhos, travessas, talheres de peixe etc. e olhava de soslaio para o pequeno elevador que traria a travessa com o Robalo. Uma ruga de preocupação vincou sua face quando o tenente veio ao seu encontro perguntando pelo peixe. Remanso pede calma e diz que vai até lá embaixo verificar, mas o oficial foi junto com ele. Desceram a escada e entraram na cozinha ao mesmo tempo e depararam com uma cena terrível. O cozinheiro estático com os olhos arregalados balbuciou qualquer coisa como:- comeram o Robalo! O tenente e o Remanso estupefatos grasnaram – Nãooo! A situação ficou preta, a coisa degringolou, o tenente com medo de dizer para comandante, não sabia o que fazer e com os olhos cravados no Chief dizia:- e esse peixe que está nessa travessa, eu estou vendo ele inteiro. O cozinheiro contendo o ódio mostrou para o oficial o estrago feito no peixe. Com ajuda de uma espátula virou o Robalo para o outro lado e aí o tenente vendo que ali era só o esqueleto, começou a suar em bicas. Com um medo danado de dar a notícia lá em cima, ficou verde ao ouvir a suas costas a voz de um emissário vindo da Praça D’armas:- o que é que está Pegando? O homem com um trejeito na boca fixou o oficial que fez a pergunta e balbuciou: - comeram o Robalo! Diga-se de passagem, mas os autores da façanha de comer o Robalo pela metade fizeram a coisa bem feita, pois o peixe foi dissecado com a precisão cirúrgica de um perito de medicina legal. As espinhas arqueadas todas inteiras lembrava com fidelidade o cavername de um Yole. Comentários à parte o certo é que o rolo foi lá pra cima e o bicho pegou mesmo. Dez minutos depois da fatídica descoberta, os convidados começaram a sair de bordo decepcionados e uma hora mais tarde, desabou a terrível reação. Uma verdadeira Tisuname. A guarnição é despertada debaixo de apito e voz para formar na popa. Muita gente pensava tratar-se de um socorro marítimo, posto de combate ou mesmo um grande incêndio a apagar, pois pelo adiantado da hora só um bom motivo justificaria o inopinado Reunir Geral. Era uma cena bizarra ver aqueles homens concentrados na popa do navio, muitos com caras de sono a escutar a preleção e a exposição dos fatos. O próprio comandante falou grosso firme e determinado: - o responsável pela violação do pescado que se apresente! E foi dado um prazo de vinte minutos caso contrário a licença para terra seria suspensa por prazo indeterminado.  A ameaça de CANA anunciada na ocasião seria sumária e pesada. E o que era de se esperar ninguém se apresentou nem mesmo dedurou. A coisa ficou assim por uns dias até que a lembrança do Robalo se esvaiu na poeira do tempo.


Fato acontecido em 1969
                                                 mariomonteirobu@uol.com.br
                                                       
           
             


           
          

           
           
















terça-feira, 27 de novembro de 2012

Lembranças do Cruzador Barroso



Embarquei no CL- Barroso- C11, em fevereiro de 1959 logo que concluí o curso de ESP/MO no CIAW, e desembarquei em fevereiro de 1962. Foram três anos de aprendizado e de muito orgulho de ter sido membro da guarnição de um dos navios mais famosos da marinha brasileira de todos os tempos. O navio com 185 metros de proa a popa era de uma beleza indescritível. O seu armamento no convés principal encimado pelas cinco torres tripleces de 152 milímetros detinha um poder de fogo fantástico. Na máquina do navio tudo era impressionante. Três praças de caldeiras de vapor saturado e uma praça de vapor superaquecido, a Bravo-4. Duas praças de Máquinas, Charlie –I e Charlie –II onde ficavam os turbos geradores principais e oito turbinas de alta e baixa pressão totalizando 100.000 HP de potência nos quatro eixos. O navio era uma verdadeira cidade flutuante. No compartimento de lazer, a lapa, a guarnição se concentrava após refeições, postos de combate ou cerimônias religiosas onde existia uma capela. O valoroso barco contava com as seguintes comodidades: lavanderia, alfaiataria, sapataria; barbearia, padaria correios e cinema que funcionava na lapa ou no convés principal.



Passagens Relevantes


           
            01- 1959 - A minha primeira comissão no CL Barroso foi ao porto do Rio Grande, RS. Nessa viagem o navio encalhou na saída da barra o que originou uma grande correria a bordo principalmente na praça de máquinas, Charlie II, com a entrada de areia no condensador de água doce. O navio assentado no fundo por ter um grande calado ficou adernado no canal esperando que a maré subisse e voltasse a flutuar normalmente. O mais grave de tudo isso, é que a belonave Apagou, ou seja, o turbo gerador de bordo foi desligado deixando o navio às escuras.  Convém salientar que um navio a vapor quando o gerador apaga enfrenta um grande problema técnico envolvendo operadores de caldeiras, maquinistas e eletricistas que conduzem o navio.
            O2- 1960- Colisão do Navio com um cargueiro norueguês no litoral sul do Rio de Janeiro. Eu estava de serviço no compartimento dos compressores da Frigorífica quando o navio sacudiu violentamente e com o choque, segui-se uma grande correria no corredor que vinha das cobertas de proa. Foi dado alarme com o toque de postos de combate. Guarneci a terceira lancha que estava de prontidão, pois possivelmente teria caído gente no mar. O navio com as máquinas paradas ficou a mercê dos balanços de través, e na tentativa de se lançar a lancha nágua fui vítima de um acidente no convés. O Barroso fez balanço de mais de vinte graus de banda. No choque, a proa do navio entrou por mais de quinze metros.
            O3- 1961- Incêndio na Bravo três, praça de caldeiras, com o navio docado no dique Rio de Janeiro. Foi um dos maiores acidentes com o velho barco. O fogo começou no porão da Bravo-3 e sem controle cresceu rapidamente. O navio estava inoperante no dique, e para agravar a situação o fundo do barco estava aberto para reparos no casco perto da quilha. Aventou-se a possibilidade de alagar o dique. Outro fato que preocupou bastante é que o fogo se alastrou rápido e subiu para o terceiro piso onde ficava a Contadoria, e lá estava todo o dinheiro do pagamento da guarnição. Naquela época o pagamento era feito em espécie. O fogo durou cerca de quatro horas. O corpo de bombeiros do Arsenal de Marinha, requisitou os bombeiros da cidade do Rio de Janeiro para ajudar a debelar as chamas que subiam pelas chaminés. Muita gente ficou intoxicada pela fumaça e era atendida no prédio do AMRJ. O incêndio foi notícia nos jornais do Rio de Janeiro.



Boas lembranças




O4- 1960- Viagem de representação a Lisboa, Portugal, tendo a bordo Excelentíssimo Senhor Presidente da República Dr. Juscelino Kubistchek de Oliveira. O embarque do presidente e sua comitiva se deu na praia de Sezimbra Portugal. Com o pavilhão presidencial no tope do mastro, o velho barco largou direto para Lisboa navegando cerca de cinco horas até a entrada do rio Tejo. Naquela oportunidade o Glorioso Barroso com todas as caldeiras acesas desenvolveu 26 knots por hora.  Vi de perto o Presidente como também suas filhas, Márcia e Maristela. Um destacamento de marinheiros e fuzileiros navais do navio desfilou na Avenida da Liberdade em Lisboa com muito garbo.  Impressionante foi o desfile naval na costa portuguesa onde trinta e duas nações estavam representadas. Terminado o desfile dos navios, foi dada liberdade de ação e mais uma vez o nosso barco fez uma bela corrida acima de 26 knots por hora. Todo o pessoal de caldeiras e máquinas estava em Detalhe Especial para o Mar. Guarneci o túnel do eixo de vante de bombordo junto com outras praças observando a temperatura dos mancais de escora face à alta rotação exigida nos eixos. No mar aberto uma fileira de navios de combate e outra fileira de navios veleiros. Entre essas fileiras passava um Transatlântico português com os presidentes de Portugal Professor Oliveira Salazar e o presidente do Brasil, Dr. Juscelino Kubstcheck em postos de continência.
    Relembro que o barco estava com 1200 pessoas a bordo sob o comando do CMG, Antonio Augusto Cardoso de Castro. Pela primeira vez peguei em Dólar e senti a sua força nas compras que fiz no comércio lusitano. Nas comemorações do quarto centenário da morte do Infante Don Henrique estavam 32 marinhas representadas.







Política de Boa Vizinhança



            05- 1960 - O primeiro porto fora do Brasil foi Las Palmas de Gran Canária, Espanha, onde aproveitei para fazer amigos de forma inusitada.   Com permissão do Imediato do navio levei cinco quilos de café para terra, pois sabia que na Europa o produto brasileiro era muito apreciado. Junto com um amigo de bordo, o CB-MA Sales, sorteamos aleatoriamente uma casa em um bairro distante da cidade. A família agraciada nos recebeu muito bem e aceitou de bom grado o precioso café brasileiro que ofertamos. Essa forma inusitada de apresentação nos levou a conhecer os principais pontos turísticos da cidade, entre os quais a Cratera de La Bandama a 2000 metros de altitude e a casa de Cólon. Ficamos por muito tempo amigos da Família Rojas.
            O segundo porto foi à cidade de Cádiz, no sul da Espanha perto do estreito de Gibraltar atraindo muita gente no cais do porto. O povo muito curioso nos cercava de perguntas sobre o Brasil e principalmente sobre o Crucero Barroso, um Buque fantástico. A cidade de Cádiz de mais de 800 anos era de uma beleza singular com seu casario medieval. Por toda a cidade tinha marinheiros do velho barco. A playa de La Vitória na Baia de Cádiz estava apinhada de turistas e moradores do lugar e nós marinheiros impressionados com o serviço de bar nas areias com garçons uniformizados era pra nós brasileiros uma grande novidade, era tudo alegria. Um fato digno de nota adveio do passeio na praia quando observamos que as banhistas (mulheres) ao sair da água tiravam a parte de cima do Biquíni para enxugar os seios, coisa que não se via aqui no Brasil. Foi o suficiente para a guarnição em peso voltar às areias daquele balneário no dia seguinte.
            Por via terrestre fomos à cidade de Sevilha região da Andaluzia. Como as demais cidades européias, Sevilha também muito antiga de casas seculares com um grande número de referências impressionantes: Plaza de toros, os dançarinos Flamengos e principalmente a monumental Catedral de Sevilha.

                                                        Rotina de Sexta Feira                                                                       


             Relembro da Rotina de Sexta Feira quando a marujada com uma sandália feita de mangueira de lona esfregava o convés com areia na cadência da banda de Fuzileiros Navais tocando hinos e dobrados militares. Outra coisa que ficou marcado era quando a guarnição nas horas de lazer se concentrava no grande compartimento apelidado de Lapa para bate papo e lazer.
            Presenciei um fato interessante na Praça de Máquinas- Chalie- II, quando eu estava carregando o grupo de Ar Comprimido de 4000 libras que serviria para abrir os cilindros de recuo dos canhões de 152 mm.  Um segundo tenente recém embarcado, com cara de menino, era assessorado por oficiais superiores e com muita reverencia contrariando o que aprendi sobre hierarquia. Descobri depois que aquele segundo tenente era descendente direto da família real. O boy era um Orleans e Bragança
            06-1976- Para encerrar, presenciei um fato lamentável no cais sul do AMRJ, isso em 1976, quatorze anos depois de ter desembarcado do Cruzador. Eu estava fazendo pesquisa sobre refrigeração para o curso de aperfeiçoamento de MO no Arsenal de Marimha na Ilha das Cobras. Emocionado subi a prancha do Velho Barco que já estava desativado. No portaló não tinha mais Oficial de serviço, Contramestre nem Ronda. Apenas um grupo de conservação estava a bordo e um bom número de Maçariqueiros cortando com fogo os canhões históricos da torre três. Que pena!



 Passagem da Linha do Equador



            Na travessia Rio de Janeiro Las Palmas o navio fez uma estada no então Território Federal de Fernando de Noronha para compensação da agulha. Na oportunidade um helicóptero de bordo sobrevoou a Ilha com mensagem do comando de bordo. O navio largou para a Europa com seus 1200 homens a bordo cruzando a linha do equador acima dos rochedos de São Pedro e São Paulo onde se procedeu a festa de batismo dos neófitos que invadiram os domínios do Rei dos mares, senhor dos ventos e das tempestades, o Rei Netuno. O meu nome de batismo foi do peixe Pargo. Foi um acontecimento marcante no meio de tanta gente embarcada. Na popa, foi improvisada uma grande piscina de lona onde os calouros eram jogados pelos “carrascos” da guarda de Netuno. A bandeira da caveira, símbolo dos piratas, ficou hasteada no mastro principal do Glorioso Cruzador Barroso até o fim da brincadeira. Ainda na travessia o navio prestou homenagem póstuma aos mortos do Cruzador Bahia na segunda guerra mundial na Estação 13.


Natal, Junho de 2007

Mário de Araújo Monteiro.

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Tender Belmonte


Essa vem do Tender Belmonte, o meu primeiro embarque no ano da graça de 1956. Era um navio antigo que atuou na Primeira Guerra Mundial e já não navegava em mar aberto, servindo como sede do segundo esquadrão de CTs. Apesar de não estar no grupo de elite da esquadra, o navio detinha em sua organização a Escola de Artífices da Marinha de Guerra do Brasil que compreendia: Escola de Torno e freza, de Solda, Ferraria. Oficina de eletrotécnica e Carpintaria. Para a época, o navio já estava bastante defasado, não apresentava acomodações dignas para todos; ainda se dormia de maca. Marinheiros MODERNOS não tinham armários, guardavam suas tralhas naqueles sacos redondos de lona. Literalmente um saco.
O serviço de Rancho era o que sobrava para os coitados dos novatos. 
Era um verdadeiro sufoco! De tanto tirar rancho no navio, fiquei amigo do cozinheiro-chefe, uma figura emblemática. De pescoço taurino e nariz adunco, lembrava um pirata dos filmes americanos. Pancho, como era conhecido, usava o Caxangá, (boné de marinheiro) em voga, sempre suado e de andar curto, mas ligeiro, esbravejava na cozinha, cheio de imprecações: - vamos boysada, quero aqui tudo limpo, lava bem essas panelas (panelão a vapor de 50 litros) que já vou me mandar pro chão!.
 Ele usava camiseta regata bem cavada onde ficava a mostra o sovaco de densa cabeleira. 
Eu e meu campanha, o Zé; conterrâneo da cidade de Palmares compreendíamos o Pancho, pois o mestre cuca não deixava de ser um grande bonachão. Com o tempo passando observei uma Manobra que ele fazia antes de ir para a terra: o saudoso mestre lavava suas camisetas regatas, espremia-as bem e botava-as pra secar no fundo dos panelões. Pode?


sábado, 4 de agosto de 2012

Ilha da Trindade

Marujos Safos


Vivendo grande parte da minha vida a bordo de navios e bases navais, muitos fatos pitorescos aconteceram entre fainas e horas de lazer. Casos simples, diria até ingênuos, mas, diante de situações impostas pelo serviço de natureza militar o pitoresco aí se configurava. Se não vejamos:
        Em 1972 o meu navio, Corveta Ipiranga, V 17 sediado no Terceiro Distrito Naval, (Natal, RN) largou do cais da Base Alte. Ari Parreiras para o Porto de Santos, para fazer reparos no motor de bombordo que estava avariado. Seria uma estada prolongada, beirando uns três meses.   Em Santos fora de sua sede o navio atracado em cais comercial despertou a curiosidade de segundos e terceiros sargentos que pretendiam baixar terra em trajes civis, uma vez que na época não era permitido baixar terra a paisana. A solicitação foi levada ao comandante que sumariamente negou as pretensões dos graduados; não estava no regulamento. (artigo 7º do RDM).  O assunto foi esquecido, mas estava latente na cabeça dos sargentos e voltou com intensidade quando o navio atracou no cais Santista, depois de nove dias de mar. Logo após a atracação, como era de praxe, o comandante foi se apresentar na capitania dos portos, e a bordo a guarnição iniciava os procedimentos de rotina, como a arrumação do barco e principalmente a baldeação.
Terminado o expediente, é dado o toque de volta as faxinas, banho e uniforme e o esperado, Licenciado formar. A marujada ansiosa pra baixar, terra se alinha no Portaló (sala de recepção) e depois de inspecionada pelo oficial de serviço desce a prancha rumo ao “Chão” sem antes fazer a respeitável continência à Bandeira nacional hasteada no mastro de popa. No pátio do porto, afastados do navio, os marujos descobriram um vagão de trem que pela aparência estava há muito tempo naquele ponto. Depois de breve inspeção descobriram que o vagão estava desativado naqueles trilhos, as rodas enferrujadas davam a entender que estava muito tempo parado.
Resumindo, o vagão encostado serviria para troca de roupa a exemplo do que acontecia na Rua Primeira de Março no Rio de Janeiro, os famosos “Armários” onde a marujada trocava de roupa. Assim, por muitos dias o vagão já era o local de troca de farda por trajes civis. Equacionou-se o problema que o comando tinha negado. Tudo corria tranqüilo a galera saía de bordo trocava de roupa deixava-as no vagão e de lá ia pra terra, visitar a cidade e lá pras tantas da matina de volta pra bordo fazia-se a operação inversa, tirava o Paisano vestia a farda e seguia pra bordo. Sempre o vagão tinha roupas, em seu bojo, era como uma extensão dos alojamentos de bordo.
A coisa estava tão legal que alguns “Soqueiros” (notívagos) tiravam até um “Ronco” (cochilo) por lá. Olha, nada fica impune ou mesmo de graça quando se está na ilegalidade. No meio da Comissão teve um feriado inopinado. A oficialidade daria uma recepção a uma comitiva de suas relações. O fonoclama do navio anunciou:- “atenção, hoje o licenciamento será mais cedo, só fica a bordo o Quarto de Serviço”! Claro que a galera gostou. Em poucos minutos o Portaló estava lotado de licenciados lembrando que os Sargentos não eram inspecionados.
Após a inspeção deixaram o navio e se mandaram pra Zona uma vez que ninguém era Filho da Terra deixando suas tralhas na coberta improvisada. No interior do vagão um amontoado de roupas, cintos caxangás, tinha até pasta de dente. Já o clima a bordo era de cordialidade e de muito bom gosto com os comes e bebes aos convidados, enquanto que na ZBM a galera curtia batida de limão com sanduba. Na hora de voltar pra bordo à marujada caminha trôpega e sonolenta. Na entrada do cais um dos Soqueiros mais sóbrio pergunta para o vigia:- “hei amigo, cadê o vagão da gente?” –“Sei que tomei uns trecos, mas bem que dá pra enxergar um vagão de trem.” O vigia que estava num cochilo pesado dá um bocejo e responde com mau humor: - “Oh, não, já é a segunda vez que me acordam nessa noite; ainda ha pouco, a droga de uma locomotiva chegou aqui no pátio recolhendo tudo quanto é vagão velho, deve ter ido pras bandas do interior”.
            A correria foi geral porque não eram somente os segundos e terceiros sargentos que trocavam de roupa no vagão. Muitos apavorados com o sumiço do vagão alugaram táxis e partiram para uma estação mais na frente para reaver suas fardas e poder entrar no navio sem problemas. Na época a regra era clara, segundos e terceiros sargentos para baixo tinham que estar com farda para entrar e sair de bordo.

              Natal, 22 de Fevereiro de 2007

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

O Naufrágio

Um fato interessante aconteceu na CV. Purus com o navio atracado no porto de Salvador, BA isso em 1969.  É que os oficiais iam dar um jantar para uns amigos do Iate Clube de Salvador e que terminou numa tremenda lambança. Aliás, nem teve começo porque o elemento principal da festança virou esqueleto. Era um dia normal, quando a rotina foi alterada no final do expediente. A guarnição foi liberada mais cedo e instruídos os marujos que estavam a bordo para evitar o convés principal em uniforme de faxina. O Gestor e o “Fiel” de bordo entabularam conversas sobre o suprimento para o evento, pois seria um jantar diferenciado. O cozinheiro chefe, cabo Pepino, de vasta experiência em navios de elite e mesmo em restaurantes civis, era peça fundamental, pois das mãos dele sairia um prato considerado uma obra de arte. Seria um robalo ao forno regado a vinho branco e uma série de truques para o prato ficar mais saboroso.
            O rancho para a guarnição saiu no horário normal e boa parte do pessoal estava a bordo salvo, alguns heróis que vagueavam pela cidade preenchendo horas para retornar ao navio. Nesse contexto, dois marujos com pouco dinheiro nos bolsos tomavam um cafezinho requentado numa birosca da cidade alta, quando um deles comentou: - é bom a gente voltar pra bordo e tentar chegar na hora do rancho - ah, o Picado já saiu há muito tempo, quem sabe o mestre cuca deixou alguma coisa pra nós retardatários, retrucou o outro. É de conhecimento da marujada o fosso que separa os oficiais das Praças-de-Pré. Originalmente pelo RDM (Regulamento Disciplinar da Marinha) vigente, como também pela cultura histórica herdada da Marinha Imperial aonde os oficiais vinham das classes aristocráticas da sociedade. Qualquer evento no seio da oficialidade passava até mesmo despercebido entre nós marinheiros. Tudo muito natural. Para um simples jantar, criava-se uma atmosfera de poder e ostentação; acionava-se o mestre do navio para arrumar a escada do Portaló colocando as sanefas com o monogramo da CV. Purus mantinha-se o cozinheiro de sobreaviso assim como o despenseiro, cabo Remanso e o encarregado do Ar Condicionado (no caso o autor deste relato). A minha participação na historia era manter uma temperatura agradável nos camarotes e Praça D’armas. Escusado é dizer que no portaló, o pessoal de serviço envergava o uniforme branco. Lá pras sete horas o cozinheiro fez mais uma vistoria nos pratos que tinha preparado: saladas frias, canapés, bolinhos de atum e em uma travessa  Wolf aonde jazia um lindo Robalo. Sim, era um Robalo de uns três quilos deitado no centro da travessa com um olho esbugalhado, mas cercado de tiras de pimentão, rodelas de tomate e pequenas lascas de azeitonas pretas. Mal comparando, parecia um defunto no velório com o caixão aberto rodeado de flores. Satisfeito com a inspeção o mestre cuca colocou a travessa no forno para manter o peixe quente e mandou para a copa que ficava no piso superior contígua a Praça D’armas, as entradas e canapés e em seguida desceu para sua Coberta (Alojamento) descansar até ser chamado para tirar o jantar. Na copa o despenseiro se comunicava com a Praça D’armas por uma portinhola. Vinho Rosé tâmaras, passas e tudo pronto, tudo nos conformes.
Descendo a ladeira do Taboão um MN-QSM a passos largos dizia pra si: - acho que perdi o Rango, mas quem sabe ainda dá tempo. E olhava aflito para o relógio que trazia no pulso.  Na cidade baixa na confluência da ladeira do Julião com uma pracinha o marujo alcança os colegas que enganaram as barrigas com os cafezinhos requentados, e foi logo falando: - e aí, companheiro, perdemos o Rango? Dali prosseguiu o grupo em direção ao cais em marcha batida.
            No interior do barco a maioria do pessoal nas suas cobertas lendo alguma revista, outros deitados e alguns cochilando, reinava a mais completa calma e tranqüilidade. A festança seria ás dez horas e já às nove horas chega o primeiro convidado acompanhado de uma linda jovem bem maquiada, de um vestido vaporoso. O Contramestre atento manda o Ronda avisar na Praça D! Armas a presença do convidado. Chega um Tenente que se aproxima do casal com um sorriso largo e cheio de Mesuras a dizer - vamos entrando e virando a cabeça para trás, diz para o Contramestre - muita atenção no serviço, heim! Claro que o pessoal do Portaló ajudaria as Madames a subir a escada do navio.
            Os três retardatários entraram na cozinha pelo acesso de popa e sem muito trabalho viram que do rancho das cinco horas restara pouca coisa. Sobre uma das chapas do fogão uma terrina de alumínio tinha resto de arroz, duas Macas Ferradas, (bife muito popular nos navios de marinha) e uma porção de purê que mal dava para um homem. O cozinheiro dormia tranqüilo porque na hora certa seria chamado para Arrumar o Robalo. Mais dois convidados e três garotas subiram a bordo. Na Praça D’Armas em Avant-premiére degustavam–se vinhos e canapés, iscas de camarão e outros salgados. O vozerio que no início era discreto já se tornava mais acalorado. Mas o que importava mesmo era a opinião do dono da festinha: - dos frutos do mar o peixe ao forno é uma das melhores iguarias, vocês vão ver!  Às dez horas, o mais antigo faz um sinal ao Gestor que como um mestre de cerimônia diz aos presentes que o jantar vai ser servido, e sai em direção à copa para avisar ao Despenseiro. Este, incontinente desce dois lances de escada e já na coberta diz para o cozinheiro: – está na hora! O Chief concorda e segue rumo à cozinha. Na Praça D’armas o clima é de descontração e uma das garotas antes comedida já ensaiava uma continência com um quepe esquecido em um divan. Claro que a jovem tomou uns drinks, não lembrava quantos. E o Despenseiro na copa se virava com os frios, vinhos, travessas, talheres de peixe etc. e olhava de soslaio para o pequeno elevador que traria a travessa com o Robalo. Uma ruga de preocupação vincou sua face quando o tenente veio ao seu encontro perguntando pelo peixe. Remanso pede calma e diz que vai até lá embaixo verificar, mas o oficial foi junto com ele. Desceram a escada e entraram na cozinha ao mesmo tempo e depararam com uma cena terrível. O cozinheiro estático com os olhos arregalados balbuciou qualquer coisa como:- comeram o Robalo! O tenente e o Remanso estupefatos grasnaram – Nãooo! A situação ficou preta, a coisa degringolou, o tenente com medo de dizer para comandante, não sabia o que fazer e com os olhos cravados no Chief dizia:- e esse peixe que está nessa travessa, eu estou vendo ele inteiro. O cozinheiro contendo o ódio mostrou para o oficial o estrago feito no peixe. Com ajuda de uma espátula virou o Robalo para o outro lado e aí o tenente vendo que ali era só o esqueleto, começou a suar em bicas. Com um medo danado de dar a notícia lá em cima, ficou verde ao ouvir a suas costas a voz de um emissário vindo da Praça D’armas:- o que é que está Pegando? O homem com um trejeito na boca fixou o oficial que fez a pergunta e balbuciou: - comeram o Robalo! Diga-se de passagem, mas os autores da façanha de comer o Robalo pela metade fizeram a coisa bem feita, pois o peixe foi dissecado com a precisão cirúrgica de um perito de medicina legal. As espinhas arqueadas todas inteiras lembrava com fidelidade o cavername de um Yole. Comentários à parte o certo é que o rolo foi lá pra cima e o bicho pegou mesmo. Dez minutos depois da fatídica descoberta, os convidados começaram a sair de bordo decepcionados e uma hora mais tarde, desabou a terrível reação. Uma verdadeira Tisuname. A guarnição é despertada debaixo de apito e voz para formar na popa. Muita gente pensava tratar-se de um socorro marítimo, posto de combate ou mesmo um grande incêndio a apagar, pois pelo adiantado da hora só um bom motivo justificaria o inopinado Reunir Geral. Era uma cena bizarra ver aqueles homens concentrados na popa do navio, muitos com caras de sono a escutar a preleção e a exposição dos fatos. O próprio comandante falou grosso, firme e determinado: - o responsável pela violação do pescado que se apresente! E foi dado um prazo de vinte minutos caso contrário a licença para terra seria suspensa por prazo indeterminado.  A ameaça de CANA anunciada na ocasião seria sumária e pesada. E o que era de se esperar ninguém se apresentou nem mesmo dedurou. A coisa ficou assim por uns dias até que a lembrança do Robalo se esvaiu na poeira do tempo.


Fato acontecido em 1969
                                                 mariomonteirobu@uol.com.br