quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Tender Belmonte


Essa vem do Tender Belmonte, o meu primeiro embarque no ano da graça de 1956. Era um navio antigo que atuou na Primeira Guerra Mundial e já não navegava em mar aberto, servindo como sede do segundo esquadrão de CTs. Apesar de não estar no grupo de elite da esquadra, o navio detinha em sua organização a Escola de Artífices da Marinha de Guerra do Brasil que compreendia: Escola de Torno e freza, de Solda, Ferraria. Oficina de eletrotécnica e Carpintaria. Para a época, o navio já estava bastante defasado, não apresentava acomodações dignas para todos; ainda se dormia de maca. Marinheiros MODERNOS não tinham armários, guardavam suas tralhas naqueles sacos redondos de lona. Literalmente um saco.
O serviço de Rancho era o que sobrava para os coitados dos novatos. 
Era um verdadeiro sufoco! De tanto tirar rancho no navio, fiquei amigo do cozinheiro-chefe, uma figura emblemática. De pescoço taurino e nariz adunco, lembrava um pirata dos filmes americanos. Pancho, como era conhecido, usava o Caxangá, (boné de marinheiro) em voga, sempre suado e de andar curto, mas ligeiro, esbravejava na cozinha, cheio de imprecações: - vamos boysada, quero aqui tudo limpo, lava bem essas panelas (panelão a vapor de 50 litros) que já vou me mandar pro chão!.
 Ele usava camiseta regata bem cavada onde ficava a mostra o sovaco de densa cabeleira. 
Eu e meu campanha, o Zé; conterrâneo da cidade de Palmares compreendíamos o Pancho, pois o mestre cuca não deixava de ser um grande bonachão. Com o tempo passando observei uma Manobra que ele fazia antes de ir para a terra: o saudoso mestre lavava suas camisetas regatas, espremia-as bem e botava-as pra secar no fundo dos panelões. Pode?


sábado, 4 de agosto de 2012

Ilha da Trindade

Marujos Safos


Vivendo grande parte da minha vida a bordo de navios e bases navais, muitos fatos pitorescos aconteceram entre fainas e horas de lazer. Casos simples, diria até ingênuos, mas, diante de situações impostas pelo serviço de natureza militar o pitoresco aí se configurava. Se não vejamos:
        Em 1972 o meu navio, Corveta Ipiranga, V 17 sediado no Terceiro Distrito Naval, (Natal, RN) largou do cais da Base Alte. Ari Parreiras para o Porto de Santos, para fazer reparos no motor de bombordo que estava avariado. Seria uma estada prolongada, beirando uns três meses.   Em Santos fora de sua sede o navio atracado em cais comercial despertou a curiosidade de segundos e terceiros sargentos que pretendiam baixar terra em trajes civis, uma vez que na época não era permitido baixar terra a paisana. A solicitação foi levada ao comandante que sumariamente negou as pretensões dos graduados; não estava no regulamento. (artigo 7º do RDM).  O assunto foi esquecido, mas estava latente na cabeça dos sargentos e voltou com intensidade quando o navio atracou no cais Santista, depois de nove dias de mar. Logo após a atracação, como era de praxe, o comandante foi se apresentar na capitania dos portos, e a bordo a guarnição iniciava os procedimentos de rotina, como a arrumação do barco e principalmente a baldeação.
Terminado o expediente, é dado o toque de volta as faxinas, banho e uniforme e o esperado, Licenciado formar. A marujada ansiosa pra baixar, terra se alinha no Portaló (sala de recepção) e depois de inspecionada pelo oficial de serviço desce a prancha rumo ao “Chão” sem antes fazer a respeitável continência à Bandeira nacional hasteada no mastro de popa. No pátio do porto, afastados do navio, os marujos descobriram um vagão de trem que pela aparência estava há muito tempo naquele ponto. Depois de breve inspeção descobriram que o vagão estava desativado naqueles trilhos, as rodas enferrujadas davam a entender que estava muito tempo parado.
Resumindo, o vagão encostado serviria para troca de roupa a exemplo do que acontecia na Rua Primeira de Março no Rio de Janeiro, os famosos “Armários” onde a marujada trocava de roupa. Assim, por muitos dias o vagão já era o local de troca de farda por trajes civis. Equacionou-se o problema que o comando tinha negado. Tudo corria tranqüilo a galera saía de bordo trocava de roupa deixava-as no vagão e de lá ia pra terra, visitar a cidade e lá pras tantas da matina de volta pra bordo fazia-se a operação inversa, tirava o Paisano vestia a farda e seguia pra bordo. Sempre o vagão tinha roupas, em seu bojo, era como uma extensão dos alojamentos de bordo.
A coisa estava tão legal que alguns “Soqueiros” (notívagos) tiravam até um “Ronco” (cochilo) por lá. Olha, nada fica impune ou mesmo de graça quando se está na ilegalidade. No meio da Comissão teve um feriado inopinado. A oficialidade daria uma recepção a uma comitiva de suas relações. O fonoclama do navio anunciou:- “atenção, hoje o licenciamento será mais cedo, só fica a bordo o Quarto de Serviço”! Claro que a galera gostou. Em poucos minutos o Portaló estava lotado de licenciados lembrando que os Sargentos não eram inspecionados.
Após a inspeção deixaram o navio e se mandaram pra Zona uma vez que ninguém era Filho da Terra deixando suas tralhas na coberta improvisada. No interior do vagão um amontoado de roupas, cintos caxangás, tinha até pasta de dente. Já o clima a bordo era de cordialidade e de muito bom gosto com os comes e bebes aos convidados, enquanto que na ZBM a galera curtia batida de limão com sanduba. Na hora de voltar pra bordo à marujada caminha trôpega e sonolenta. Na entrada do cais um dos Soqueiros mais sóbrio pergunta para o vigia:- “hei amigo, cadê o vagão da gente?” –“Sei que tomei uns trecos, mas bem que dá pra enxergar um vagão de trem.” O vigia que estava num cochilo pesado dá um bocejo e responde com mau humor: - “Oh, não, já é a segunda vez que me acordam nessa noite; ainda ha pouco, a droga de uma locomotiva chegou aqui no pátio recolhendo tudo quanto é vagão velho, deve ter ido pras bandas do interior”.
            A correria foi geral porque não eram somente os segundos e terceiros sargentos que trocavam de roupa no vagão. Muitos apavorados com o sumiço do vagão alugaram táxis e partiram para uma estação mais na frente para reaver suas fardas e poder entrar no navio sem problemas. Na época a regra era clara, segundos e terceiros sargentos para baixo tinham que estar com farda para entrar e sair de bordo.

              Natal, 22 de Fevereiro de 2007

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

O Naufrágio

Um fato interessante aconteceu na CV. Purus com o navio atracado no porto de Salvador, BA isso em 1969.  É que os oficiais iam dar um jantar para uns amigos do Iate Clube de Salvador e que terminou numa tremenda lambança. Aliás, nem teve começo porque o elemento principal da festança virou esqueleto. Era um dia normal, quando a rotina foi alterada no final do expediente. A guarnição foi liberada mais cedo e instruídos os marujos que estavam a bordo para evitar o convés principal em uniforme de faxina. O Gestor e o “Fiel” de bordo entabularam conversas sobre o suprimento para o evento, pois seria um jantar diferenciado. O cozinheiro chefe, cabo Pepino, de vasta experiência em navios de elite e mesmo em restaurantes civis, era peça fundamental, pois das mãos dele sairia um prato considerado uma obra de arte. Seria um robalo ao forno regado a vinho branco e uma série de truques para o prato ficar mais saboroso.
            O rancho para a guarnição saiu no horário normal e boa parte do pessoal estava a bordo salvo, alguns heróis que vagueavam pela cidade preenchendo horas para retornar ao navio. Nesse contexto, dois marujos com pouco dinheiro nos bolsos tomavam um cafezinho requentado numa birosca da cidade alta, quando um deles comentou: - é bom a gente voltar pra bordo e tentar chegar na hora do rancho - ah, o Picado já saiu há muito tempo, quem sabe o mestre cuca deixou alguma coisa pra nós retardatários, retrucou o outro. É de conhecimento da marujada o fosso que separa os oficiais das Praças-de-Pré. Originalmente pelo RDM (Regulamento Disciplinar da Marinha) vigente, como também pela cultura histórica herdada da Marinha Imperial aonde os oficiais vinham das classes aristocráticas da sociedade. Qualquer evento no seio da oficialidade passava até mesmo despercebido entre nós marinheiros. Tudo muito natural. Para um simples jantar, criava-se uma atmosfera de poder e ostentação; acionava-se o mestre do navio para arrumar a escada do Portaló colocando as sanefas com o monogramo da CV. Purus mantinha-se o cozinheiro de sobreaviso assim como o despenseiro, cabo Remanso e o encarregado do Ar Condicionado (no caso o autor deste relato). A minha participação na historia era manter uma temperatura agradável nos camarotes e Praça D’armas. Escusado é dizer que no portaló, o pessoal de serviço envergava o uniforme branco. Lá pras sete horas o cozinheiro fez mais uma vistoria nos pratos que tinha preparado: saladas frias, canapés, bolinhos de atum e em uma travessa  Wolf aonde jazia um lindo Robalo. Sim, era um Robalo de uns três quilos deitado no centro da travessa com um olho esbugalhado, mas cercado de tiras de pimentão, rodelas de tomate e pequenas lascas de azeitonas pretas. Mal comparando, parecia um defunto no velório com o caixão aberto rodeado de flores. Satisfeito com a inspeção o mestre cuca colocou a travessa no forno para manter o peixe quente e mandou para a copa que ficava no piso superior contígua a Praça D’armas, as entradas e canapés e em seguida desceu para sua Coberta (Alojamento) descansar até ser chamado para tirar o jantar. Na copa o despenseiro se comunicava com a Praça D’armas por uma portinhola. Vinho Rosé tâmaras, passas e tudo pronto, tudo nos conformes.
Descendo a ladeira do Taboão um MN-QSM a passos largos dizia pra si: - acho que perdi o Rango, mas quem sabe ainda dá tempo. E olhava aflito para o relógio que trazia no pulso.  Na cidade baixa na confluência da ladeira do Julião com uma pracinha o marujo alcança os colegas que enganaram as barrigas com os cafezinhos requentados, e foi logo falando: - e aí, companheiro, perdemos o Rango? Dali prosseguiu o grupo em direção ao cais em marcha batida.
            No interior do barco a maioria do pessoal nas suas cobertas lendo alguma revista, outros deitados e alguns cochilando, reinava a mais completa calma e tranqüilidade. A festança seria ás dez horas e já às nove horas chega o primeiro convidado acompanhado de uma linda jovem bem maquiada, de um vestido vaporoso. O Contramestre atento manda o Ronda avisar na Praça D! Armas a presença do convidado. Chega um Tenente que se aproxima do casal com um sorriso largo e cheio de Mesuras a dizer - vamos entrando e virando a cabeça para trás, diz para o Contramestre - muita atenção no serviço, heim! Claro que o pessoal do Portaló ajudaria as Madames a subir a escada do navio.
            Os três retardatários entraram na cozinha pelo acesso de popa e sem muito trabalho viram que do rancho das cinco horas restara pouca coisa. Sobre uma das chapas do fogão uma terrina de alumínio tinha resto de arroz, duas Macas Ferradas, (bife muito popular nos navios de marinha) e uma porção de purê que mal dava para um homem. O cozinheiro dormia tranqüilo porque na hora certa seria chamado para Arrumar o Robalo. Mais dois convidados e três garotas subiram a bordo. Na Praça D’Armas em Avant-premiére degustavam–se vinhos e canapés, iscas de camarão e outros salgados. O vozerio que no início era discreto já se tornava mais acalorado. Mas o que importava mesmo era a opinião do dono da festinha: - dos frutos do mar o peixe ao forno é uma das melhores iguarias, vocês vão ver!  Às dez horas, o mais antigo faz um sinal ao Gestor que como um mestre de cerimônia diz aos presentes que o jantar vai ser servido, e sai em direção à copa para avisar ao Despenseiro. Este, incontinente desce dois lances de escada e já na coberta diz para o cozinheiro: – está na hora! O Chief concorda e segue rumo à cozinha. Na Praça D’armas o clima é de descontração e uma das garotas antes comedida já ensaiava uma continência com um quepe esquecido em um divan. Claro que a jovem tomou uns drinks, não lembrava quantos. E o Despenseiro na copa se virava com os frios, vinhos, travessas, talheres de peixe etc. e olhava de soslaio para o pequeno elevador que traria a travessa com o Robalo. Uma ruga de preocupação vincou sua face quando o tenente veio ao seu encontro perguntando pelo peixe. Remanso pede calma e diz que vai até lá embaixo verificar, mas o oficial foi junto com ele. Desceram a escada e entraram na cozinha ao mesmo tempo e depararam com uma cena terrível. O cozinheiro estático com os olhos arregalados balbuciou qualquer coisa como:- comeram o Robalo! O tenente e o Remanso estupefatos grasnaram – Nãooo! A situação ficou preta, a coisa degringolou, o tenente com medo de dizer para comandante, não sabia o que fazer e com os olhos cravados no Chief dizia:- e esse peixe que está nessa travessa, eu estou vendo ele inteiro. O cozinheiro contendo o ódio mostrou para o oficial o estrago feito no peixe. Com ajuda de uma espátula virou o Robalo para o outro lado e aí o tenente vendo que ali era só o esqueleto, começou a suar em bicas. Com um medo danado de dar a notícia lá em cima, ficou verde ao ouvir a suas costas a voz de um emissário vindo da Praça D’armas:- o que é que está Pegando? O homem com um trejeito na boca fixou o oficial que fez a pergunta e balbuciou: - comeram o Robalo! Diga-se de passagem, mas os autores da façanha de comer o Robalo pela metade fizeram a coisa bem feita, pois o peixe foi dissecado com a precisão cirúrgica de um perito de medicina legal. As espinhas arqueadas todas inteiras lembrava com fidelidade o cavername de um Yole. Comentários à parte o certo é que o rolo foi lá pra cima e o bicho pegou mesmo. Dez minutos depois da fatídica descoberta, os convidados começaram a sair de bordo decepcionados e uma hora mais tarde, desabou a terrível reação. Uma verdadeira Tisuname. A guarnição é despertada debaixo de apito e voz para formar na popa. Muita gente pensava tratar-se de um socorro marítimo, posto de combate ou mesmo um grande incêndio a apagar, pois pelo adiantado da hora só um bom motivo justificaria o inopinado Reunir Geral. Era uma cena bizarra ver aqueles homens concentrados na popa do navio, muitos com caras de sono a escutar a preleção e a exposição dos fatos. O próprio comandante falou grosso, firme e determinado: - o responsável pela violação do pescado que se apresente! E foi dado um prazo de vinte minutos caso contrário a licença para terra seria suspensa por prazo indeterminado.  A ameaça de CANA anunciada na ocasião seria sumária e pesada. E o que era de se esperar ninguém se apresentou nem mesmo dedurou. A coisa ficou assim por uns dias até que a lembrança do Robalo se esvaiu na poeira do tempo.


Fato acontecido em 1969
                                                 mariomonteirobu@uol.com.br

Um Drama Abaixo de Zero


RB Marlin
O mar estava bom para trabalhar naquele dia de junho de 2002. Pequenas ondas batiam no bico de proa do Rb Marlin, (foto) originando pequenos balanços. Vez por outra uma vaga maior sacudia o navio com mais vigor. Era o vigésimo dia de embarque dos trinta e cinco estipulados no contrato com a empresa Astro Marítima Navegação. O cozinheiro do navio acordou às 04h30 da manhã e preparou em poucos minutos a copa e cozinha para a primeira refeição do dia. Naquele horário, somente três homens estavam de serviço: um no Passadiço, comandando o barco, o outro na praça de máquinas, (eu próprio) e o Homero como era chamado o mestre cuca, marujo antigo na empresa e que desfrutava de bom conceito do comando do navio. Muito afeito a arrumação de sua área, ele ultimava os detalhes com a louça e talheres postos à mesa para o café da manhã que seria servido a partir das seis horas. Tudo pronto deixou o compartimento da cozinha e embrenhou-se no corredor que dá acesso ao convés principal pela popa. Ele gostava muito de pescar, e quando tinha uma folga, por menor que fosse, lançava mão do carretel de linha (0,80) à cata de grandes Cavalas do fundo do mar. Diga-se de passagem, Homero, era um exímio pescador quando fora de serviço. No terceiro arremesso de sua linha, ele lembrou de que faltava algo a fazer, e incontinenti, enrolou a linha de volta ao carretel saindo célere a câmara frigorífica para retirar carne para o rancho do meio dia. Puxou a tranca da pesada porta deixando-a entreaberta, uma vez que o mar estava Espelhado, (tranqüilo) como dizemos, e lá dentro puxou um fardo de carne congelada. Um balanço mais forte do navio o fez perder o equilíbrio e com isso a robusta porta fechou o compartimento com o nosso amigo preso lá dentro.
            No passadiço o comandante conferia os instrumentos de navegação e lançava os olhos no horizonte. Pela proa via as plataformas PUB-2, PUB-3 e por boreste a uma boa distancia a PAG-2. De bombordo dava pra ver a costa de Macau por trás da PUB-15. O mar já mudara de espelhado para brando e os balanços não eram os mesmos. Cardoso, o competente comandante, pega o telefone interno e liga para a salinha - como era conhecida a copa do navio- e ninguém atendeu; minutos depois volta a ligar e fica sem resposta. Dá uma olhada no mar pela proa, ativa o Piloto Automático e resolve ir lá embaixo tomar um gole de café. Desceu as escadas de acesso aos camarotes e em seguida outro lance de escadas chegando à entrada da copa. A salinha estava vazia; não se queixou, e como sempre fazia sentou-se na primeira cadeira e pediu: - Oi, Homero, me traz um pequeno- Sem obter resposta, o austero comandante levantou-se e foi até a portinhola de acesso à cozinha, e viu que lá não estava o cozinheiro. Um pouco contrariado voltou depressa à cabine de comando desativando o Piloto Automático. Estava na hora de sair o café e o mestre Cuca não estava no seu posto. Enquanto isso o homem de serviço na máquina sobe ao corredor de acesso ao convés e vai até a copa tomar um cafezinho. O telefone interno da Copa tocava insistentemente e o foguista atendeu:
                                   - é da copa sim, não, não está!

            
            No interior da câmara fria um homem lutava pela vida envolto numa temperatura de 12 graus abaixo de zero. O seu corpo começara a absorver a temperatura ambiente que era muito baixa e o pânico tomava conta do homem. Num ato de pura infelicidade, a porta do frigorífico fechou-se para ele com um balanço do navio. No escuro e sem encontrar o botão que acionaria o alarme de gente presa no compartimento, Homero entrou em momentos de pavor. Gritava com todas as forças e esmurrava a porta estanque da Câmara. Sentia muito frio, como sentia também que o seu corpo começava a se enrijecer. Tentava se aquecer com as próprias mãos, friccionando os braços e pernas; respirava com dificuldade, pois a quantidade de oxigênio no compartimento tinha caído sensivelmente. Começou a rezar achando ter chegado a sua hora. Caído no estrado de madeira entre fardos de carne e frutas caídas das prateleiras, achou que o seu cérebro estava encolhendo, pois, já não coordenava mais seus pensamentos. Enquanto isso no convés principal, na popa, quatro homens procuravam pelo chefe da cozinha do Rebocador. Visivelmente preocupados caminharam depressa ao compartimento da frigorífica o único dos compartimentos do navio que não tinha sido ainda verificado. O comandante no passadiço avisa pelo fonoclama que o navio ia atracar na PUB-2 para receber água industrial. Os homens se dividiram em dois grupos: um foi atender o chamado do comando e os outros dois avançaram direto à câmara fria. Homero sentiu renascer ao ver que a porta se abriu bruscamente acompanhada de claridade e uma lufada de  ar quente. Sua mente voltou logo a funcionar melhor. Estava ele em uma posição de autodefesa, todo encolhido com os braços protegendo o tórax, morrendo de frio. Foi retirado às pressas e levado ao corredor para ser mais bem assistido. Perto de uma hipotermia o nosso amigo passou por todos os procedimentos de restauração da temperatura corporal e horas depois voltou a suas atividades. No comando do barco junto à empresa, ficou clara a necessidade urgente de intensificar-se o adestramento no que diz respeito à segurança e o conhecimento de cada homem das instalações de bordo.


Nota.  Esse relato é baseado em fato real. Trabalhei com o Homero muitos turnos de 35 dias no Campo de Ubarana- RN e também na Bacia de Paracuru no Ceará.
Natal, 09 de Janeiro de 2008- Mário de Araújo Monteiro.