domingo, 24 de março de 2013

Lancha Brasil I



LANCHA BRASIL-I
                                                                                       
                                                                                      

O meu embarque na Marinha Mercante (Navegação de Cabotagem) ocorreu em 15 de Agosto de 1987. Foi um momento muito esperado, mas de pequena duração motivado por um grave acidente com a Lancha Brasil-I (Foto 01), na saída da barra do porto de Guamaré, RN. Quando fui para a reserva da Marinha de Guerra em 1985, eu tinha um objetivo de só embarcar novamente depois de dois anos de aposentadoria. Era como eu mesmo dizia para os amigos, tirar uma grande folga longe do mar. Entretanto, um ano depois de vestir o pijama, senti falta da vida agitada que o mar proporcionava e procurei contatos com o pessoal da Capitania dos Portos para me habilitar a tirar a carteira (concurso) de Condutor Motorista. De posse dessa carteira, embarquei na Lancha Brasil-I da Delba Navegação Ltda.


 Lancha Brasil I


Construída sob encomenda em estaleiro no Ceará, a embarcação tinha características próprias para dar apoio às plataformas da região Nordeste, precisamente em águas rasas. Medindo cerca de trinta metros de comprimento e de fundo chato, a lancha não lembrava nada os imponentes navios da Marinha onde servi por muitos anos. Fui apresentado a bordo pelo subgerente da empresa que trazia consigo documentos da lancha e suplemento de rancho. Nessa mesma tarde ele voltou para a base da Delba em Natal. Percorri o navio de proa a popa me surpreendendo com o tamanho das acomodações e mentalmente fazia comparações com os últimos navios da marinha que tinha servido por mais de vinte anos: Rebocador Almte. Guilhem 65 metros, Contratorpedeiro Maranhão 115 e Cruzador Barroso com 183 metros de comprimento total. Apesar das comparações, achei a minha nova embarcação bem cuidada e que minha adaptação seria rápida.  
No dia seguinte, o barco recebeu carga geral e largou do cais na maré às 10h30min. Descendo o Rio Aratuá, a lancha abria vista por bombordo para a Praia do Presídio com suas casinhas de madeira. Por boreste, uma visão ampla dos manguezais abundantes da região, interrompida por um Furo (espaço de um afluente) que acessa ao atracadouro da Salina Amarra Negra. Deixando pela popa o farol de Galinhos, a lancha mergulha no mar aberto ao campo de Ubarana. Era essa a missão da Brasil-I, transportar carga geral e translado de pessoal para as plataformas marítimas naquela área.
Depois de trinta dias de entrada e saída da barra de Guamaré, eu já conhecia todos os movimentos do barco quanto ao conteúdo da carga, o destino das entregas nas plataformas e jaquetas e particularmente as curvas do Rio Aratuá; sabia até onde começava os primeiros balanços da embarcação, isso depois de ultrapassar a quarta bóia rumo ao mar.
Estávamos no mês de agosto e fazia um calor terrível na cidade de Guamaré com seus 10.000 habitantes, calor esse aliviado por lufadas esporádicas de ventos vindas da costa. No pátio de manobras da Petrobras, o movimento de carretas, empilhadeiras e guindastes era grande. Estavam atracados no cais três rebocadores e duas lanchas. A estiva se virava arrumando as cargas e empilhando Pallets de sal no convés de um rebocador.



CARGA PERIGOSA


Na minha cabine, eu fazia anotações pondo em dia o mapa de manutenção da máquina. Faltava uma hora para o barco largar do cais. Assim, fui à praça de máquinas ultimar os preparativos para o funcionamento dos motores (GM), verificando a água, óleo, ar comprimido e realizar o procedimento da pré-lubrificação dos MCPs. No convés, eu observei a carga que íamos levar para a área. Afora pequenas caixas e malotes, o grosso do material era somente tubos de perfuração. Era uma grande quantidade dessas varas de nove metros de comprimento, com diâmetro aproximado de três polegadas. Seriam umas trezentas unidades empilhadas no convés de ferro da embarcação que para o seu porte era uma carga considerável.
Às 13h30min, os cabos de amarração são liberados e o comandante da Brasil-I manobra em marcha lenta descendo o sinuoso rio com os tubos de ferro. Como eu sempre fazia na saída do porto, me postei na porta do rancho virado para a popa observando a carga. A lancha descia suavemente, como se estivesse em um lago. Depois da quarta bóia surgiam as primeiras marolas vindas do mar. O rio se alargava na medida em que o barco avançava e sempre desviando os bancos de areia que são muitos naquela barra. Um fato me chamou a atenção: verifiquei que os canos se acomodavam nas curvas com o aumento dos balanços da embarcação. Fiquei atento e não mais tirei os olhos do monte de ferro na minha frente, devido à proximidade do mar.


A Virada


A pequena cidade sumiu atrás das dunas que margeiam o Rio Aratuá. O cheiro forte de maresia indicava que estávamos perto da saída da barra. Eu já me segurava no corrimão da antepara por causa dos fortes sacolejos da pequena lancha. De repente, a embarcação mergulhou em uma vaga e os tubos de ferro tilintaram uns sobre os outros sobrepondo- se a boreste (lado direito). Lépido, saí daquele marasmo e fui avisar ao comandante que a carga ia Correr. No tijupá, conduzindo o barco com muita perícia, o Mestre de Cabotagem mal ouviu o meu grito. A pequena Lancha Brasil-I tombou para boreste levando toda carga, saindo do seu centro de gravidade e permanecendo nessa incômoda posição com uma das hélices fora dágua, cavitando. Zé Brito, o comandante, foi arremessado para a borda do navio, mas não largou o timão. Eu também caí para o mesmo bordo, e desorientado me agarrei no degrau da escada do mastro. Para entender a situação: tudo que estava na horizontal ficou na vertical. Portanto, tive que me arrastar como um réptil até a borda e me apoiar em cima do costado que antes ficava mergulhado na água. Os demais membros da tripulação estavam na mesma posição, grudados no casco da lancha. Foi um momento apavorante, o medo tomou conta de todos nós, pois o barco estava prestes a emborcar. Grudado nas chapas de ferro que formavam o costado, a minha preocupação era com o impacto das grandes ondas que batiam sucessivamente em toda extensão da lancha. Pensei em me jogar no mar ao ver uma grande onda se formando a barlavento. O comandante, exasperado, gritou para alguém guarnecer o rádio e fazer uma chamada de emergência enquanto governava a lancha praticamente deitado no piso do tijupá. Arrastei-me até o suporte do rádio que estava na freqüência de espera, canal 16, e fiz uma chamada geral para toda a área. Segurando firmemente a balaustrada esperei o impacto da grande onda que poderia emborcar a nossa embarcação. Não me lembro de se sentia medo naquela hora. Estava sim, muito tenso, pensando tão somente em me jogar na água no momento certo. Caiu a grande onda no pequeno convés da Brasil-I estremecendo toda aquela massa de ferro. A pancada foi tão violenta que o barco quase volta a sua posição normal de flutuação. Uma cortina de água caiu sobre nós. O balanço provocado pelo impacto quase me arremessou para as águas turbulentas da costa de Galinhos. Não tardou chegar resposta de terra ao nosso chamado. Era da base da Petrobras em Guamaré, solicitando detalhes e mais informações do que estava ocorrendo:

- Brasil-I, SETRAMA, (setor de transporte marítimo): “o que ‘tá’ pegando?”.
- SETRAMA, Brasil-I: “estamos nas imediações da bóia de espera, a carga correu e a lancha virou. Estamos com um eixo fora dágua, precisamos de socorro urgente!”.

O que era uma tarde ensolarada com ventos moderados virou para tempo nublado com ares de borrasca. A experiência de Zé Brito fez a diferença lutando valentemente no timão para aproar a embarcação no rumo do Porto. Só que a lancha não respondia ao comando por conta de um dos lemes estar fora d’água.
A espera do socorro prometido era exasperante, mas uma nova chamada do SETRAMA dava conta de que a Lancha Parnaíba que estava operando em Ubarana vinha nos socorrer. Vinte minutos depois, o socorro chega a nossa proa. O diálogo entre os dois comandantes foi sucinto:

-Vou passar um cabo pela sua proa, em seguida rebocá-lo até o porto!
– O outro responde, Pode arremessar!


Epílogo


O porto de Guamaré estava apinhado de gente: funcionários da Petrobras, seguranças do pátio de manobras e todo o pessoal da estiva a espera da lancha que chegava com o casco fora dágua mostrando a hélice de bombordo no seco. Dentro do rio não tinha mais balanço e logo que atracou, descemos para terra obviamente sendo alvo de perguntas. A estiva deu início à retirada dos tubos. A cada lote de tubos içado pelos guindastes, a lancha retomava o seu ponto normal de flutuação. Evidentemente que a Petrobras queria saber por que a lancha virou e o que havia de errado com a carga.
Reunidos no escritório do SETRAMA, o comandante da lancha, o gerente da Delba Navegação Ltda. e o encarregado da Petrobras chegaram à conclusão que os tubos sobre o convés de ferro sem um anti derrapante fatalmente acarretaria em problemas com o desarrumo de carga em mar agitado. O acidente poderia ter sido evitado se a carga dessa natureza fosse peada com correntes e bem distribuída sobre o convés.
Entende-se que um fato como esse é passível de discussão para tão somente aumentar a segurança dos equipamentos e, principalmente, a segurança das vidas envolvidas no processo.

sexta-feira, 1 de março de 2013

Ilha da Trindade IV



                             O Pico do Desejado


            Quando um membro da guarnição está integrado com os meandros da Ilha passa a encarar desafios mais ousados, a ver sem temor obstáculos que antes seriam intransponíveis e se aprofundar em pontos mais difíceis e um desses desafios é chegar ao Pico do Desejado (602m). Quem passa pelo POIT e não vai ao Teto da Ilha é o mesmo que ir a Roma e não ver o Papa. È como o lugar mais alto do pódio em uma competição esportiva.  Para se chegar ao cimo tem que se transpor uma série de trilhas, a maioria delas apagadas e outras demarcadas com cal, escalar barreiras e escarpas e passar colado em uma parede que forma o Valadão. Esse trecho é o resultado da erosão que se formou ao longo do tempo, um rasgo gigantesco no centro da Ilha.
            Para mim, foi o ponto mais crítico da caminhada até o topo. A 450 metros de altitude tem-se acesso a uma localidade conhecida como Cela onde o terreno forma uma espécie de praça que se apraz a descanso e o mais importante á observação dos acidentes da Ilha lá embaixo: Morro do Paredão, Praia do Príncipe, Ponta dos Farilhões, Praia das Tartarugas e bem distante, 40 milhas náuticas a Leste, o arquipélago de Martim Vaz, tudo visto em pequenas dimensões em virtude estarmos acima desses acidentes a mais de 400 metros de altitude. A beleza de tudo lá embaixo é indescritível. Sentados naquela altitude ninguém se atrevia a falar, bastava ver tudo e se conscientizar que poucas pessoas no mundo têm o privilégio de estar num universo tão surpreendente. A Subida prossegue em Zig-Zag serpenteando bases de morros e quando não, praticando alpinismo amador. O preparo físico foi determinante nessa aventura.
            Finalmente alcançamos o Ponto Culminante da Ilha da Trindade! Exaustos e muito emocionados, exultamos aquela conquista. Guardando as proporções, é como um montanhista alcançar o Pico da Neblina com 3014 metros de altitude, o ponto mais alto do Brasil no noroeste do Estado do Amazonas. Ali no topo da Ilha eu observei a vastidão do Oceano, formando de onde estávamos uma circunferência colossal. Eu me imaginava o vértice de tudo aquilo. Para deleite do grupo encontramos naquele ponto uma matinha com plantas e arbustos um espetáculo de rara beleza. Explorando a área, encontramos as decantadas Samambaias Gigantes de até seis metros de altura remanescente da flora devastada desde as primeiras ocupações, e como representante da fauna, proliferavam lá em cima os caranguejos gigantes (encontrado somente no Desejado) diferente dos crustáceos amarelos da parte baixa da Ilha. Via-se também no topo de um morro abaixo conhecido como Fazendinha, um pequeno bando de ariscas Galinhas D’angola popularmente conhecidas no nordeste brasileiro como Guinés. O nosso grupo teve o privilégio de assistir a um espetáculo belíssimo de múltiplos Arco-íris lá embaixo encobrindo a parte habitada, motivado pelo Pirajá que desabava naquela hora.
            Satisfeitos, esbanjando muito orgulho por ter alcançado o ponto mais famoso da Ilha o grupo desce sem problemas até o nível do mar. Eu particularmente estava exultante e querendo logo anotar a Invasão do Desejado.
                                                                  
                                                   
Curiosidades


            Com o passar do tempo na Trindade, tomamos conhecimento de fatos pitorescos e até inimagináveis. Comentando sobre A Rotina fiz referencia ao fenômeno das águas na praia com a aproximação de uma pessoa notadamente nos lugares ermos como presenciei na base do morro do paredão onde existe um túnel. Dessa feita me refiro a Pedra da Garoupa localizada na Praia do Príncipe. Essa pedra ficou temida e conhecida pelo triste episódio envolvendo dois membros de guarnição anterior a nossa, que perderam suas vidas quando pescavam sobre ela, daí estigmatizada como Pedra da Garoupa.
        A sua posição na praia com maré baixa é um convite para subir ao seu topo (3 metros) e jogar a linha na água. Junto com outros companheiros a curiosidade nos levou até lá. Para chegar à praia do Príncipe onde fica a pedra, faz-se uma descida de 200 metros em uma encosta de declive acentuado parecendo mais uma parede e o surpreendente nesse sitio é um cheiro muito forte de enxofre por toda sua extensão, aliás, essa área se estende ao morro do paredão onde existem crateras do vulcão extinto. Ficamos na beira dágua observando as inscrições gravadas na face da gigantesca rocha: duas estrelas e duas cruzes, princípio e fim de dois guardiões do POIT.  O mar estava calmo e as águas chegavam à beira dágua em fluxo e refluxo bem de mansinho. Absortos, com os olhos grudados na pedra, inesperadamente fomos surpreendidos por uma carga dágua que nos empurrou para terra firme. Eu particularmente tive receio de ficar naquele lugar, pois aquilo me lembrava do que aconteceu na plataforma do Túnel. Outro fato semelhante ocorreu na Praia das Cabritas no norte da Ilha onde existem piscinas naturais de águas transparentes. Com a minha proximidade das águas, o mar que estava manso foi aos poucos aumentando o vai-vem das ondas, e surpreendentemente o local ficou ressacado o que me fez sair prudentemente daquele lugar. São coisas assim que fazem da Trindade um lugar surpreendente e fascinante.    A Ilha está plantada naqueles confins a milhões de anos e o contingente humano que pisou o seu solo em épocas remotas deixou a nefasta marca da devastação de sua flora. Até parece que esses fortuitos incidentes são uma represália do mar às guarnições contemporâneas.

                                                                    Praia das Tartarugas


            A Praia das Tartarugas, segundo biólogos, é um ponto de desova desses quelônios e a Trindade é sempre visitada por elas deixando cada uma cerca de 130 ovos enterrados na areia. Realmente é a única praia na ilha que tem uma extensão muito grande de areia. Movidos pela curiosidade fomos ao local a noite munidos de lanternas e bem agasalhados, uma vez que fazia frio, mais pela rajada de vento que soprava na hora. Se chegar a essa praia com a luz do sol era difícil, pior ainda durante uma noite sem lua. Caminhando em fila indiana, transpomos as barreiras naturais até pisar as areias fofas do sítio dos quelônios. Acendemos nossas lanternas e varremos o lugar com fachos de luz.              
Encontramos facilmente uma enorme representante acabando de cobrir com areia o buraco onde tinha deixado seus ovos. Fomos ao seu encontro checar de perto. Era um belo exemplar de tamanho, e de peso, que teria aproximadamente setenta quilos, a cabeça e o pescoço de grandes bitolas insinuavam uma tartaruga adulta. Para tirar fotos foi preciso deixá-la de barriga pra cima até o dia seguinte para aproveitar a luz do dia. Depois das fotos ajudamos à centenária (?) tartaruga seguir rumo ao mar deixando atrás dela o rastro sulcado pelas longas barbatanas.