sexta-feira, 18 de outubro de 2013




Um “Pastor Alemão” embarcado

Corria o ano de 1967 e a Corveta Purus, V23, cumprindo determinação do Comando do Terceiro Distrito Naval, estava atracada no cais de Salvador, BA assumindo o serviço de socorro marítimo na área do Segundo Distrito Naval. Para nós da guarnição, a mudança de área de trabalho era apenas mais um porto a trabalhar e caprichar nos exercícios e adestramentos. A permanência do navio em Salvador era de dois meses quando então outra corveta assumiria o Socorro Marítimo na área. Por estar fora de sua sede, toda a guarnição morava a bordo, os chamados “crônicos”, aqueles que poucas vezes baixavam a terra. Rotineiramente o navio saía da barra para adestramento e postos de combate, isso duas ou mais vezes por semana; salvo em casos especiais como um pedido de socorro ou mesmo apoio a uma embarcação a deriva em áreas adjacentes. Isso, num todo se tornava rotineiro o dia a dia para a guarnição: dias, semanas e finalmente os dois meses de estada naquela área. Para os marujos de primeira viagem tudo era novidade, aquilo era a vida dos sonhos e quanto mais dias atracado no porto, melhor para se curtir a capital baiana com seus encantos: cidade baixa, cidade alta, elevador Lacerda, Pelourinho, ladeira da montanha e o emaranhado de becos sujos da terra de Castro Alves.  Nos finais de semana, entretanto, a rotina de bordo mudava com um passeio pelos locais mais interessantes da cidade, vez que a prefeitura da capital oferecia ao navio um ônibus para a guarnição usar da melhor forma possível, como visitas a pontos turísticos e áreas de lazer da capital baiana. Naquele sábado o pessoal Fundeou nas areias de Itapoã, praia muito frequentada na época.


Leão o mascote
        
            A praia estava cheia, o movimento de gente, crianças, adultos e jovens em roupas de banho compunham um ambiente característico de fim de semana em Itapoã. A turma do navio, cerca de quinze homens, destacava-se dos banhistas por praticar uma improvisada pelada com uma bola de borracha. A alegria reinava no meio daqueles homens que pareciam crianças. Quando a bola caia na água, o jogo parava até que ela retornasse a areia trazida por um cão enorme que se juntou ao grupo. O cão muito alegre não largava a turma de marinheiros ora pulando e brincando, trazia pedaços de madeira, bola, tudo que se jogava na água. Notava-se que o animal estava à procura de companhia para brincar, pois parecia perdido, sem dono. No fim da tarde a marujada encerra as brincadeiras e retorna para o ônibus em demanda do navio. O mais antigo confere o pessoal e dá ordem ao motorista para largar quando olha para a porta do coletivo e vê o cachorro entrando no salão, com um palmo de língua de fora farejando cada um dos marujos demonstrando extrema alegria. O mais antigo indaga à turma de quem seria aquele cachorro, quem era o dono e fez gesto de enxotá-lo do ônibus, mas a galera não gostou e entraram em consenso e levaram o belo animal para bordo. O cão era um Pastor Alemão de porte acima da média aparentando um ano de idade e ser muito dócil e saudável. Diante de tanta evidencia via-se que o cachorro era bem cuidado e que certamente teria dono, mas ninguém ligou pra isso e adentraram no navio com o bicho que foi efusivamente recebido pela outra turma que estava a bordo. Leão como foi batizado farejava tudo que encontrava pela frente no interior do navio. Estranhou de início o sobe e desce de escadas, mas foi logo se adaptando e de receber tantos afagos já era intimo de toda guarnição. Quando o comandante tomou conhecimento do cachorro no navio, mandou chamar o mais antigo para saber o que tinha acontecido. O sargento explicou o que realmente aconteceu e disse que na hora de voltar para bordo ninguém na praia reclamou a posse do animal. Sem mais conversa, o cão ganhou nome e status de Mascote de Bordo. Providências foram tomadas como vacina antirrábica, vermífugo e carrapaticida, além de justa mordomia com alimentação de bordo e ração balanceada.
            Semanas se foram e o navio passou o Serviço de Socorro Marítimo para outra corveta e largou do cais de Salvador com destino a cidade do Rio de Janeiro levando em seu bojo o cachorro adotado. Com isso, a mascote de bordo a exemplo da guarnição somava também milhas navegadas e dias de mar. Um fato interessante foi observado por todos do navio com relação a Leão, quando o barco entrou na baia da Guanabara. O animal sentiu cheiro de terra por que sentiu a viagem de dois dias literalmente fora do seu convívio e com isso ficou bastante ansioso, mas ao descer no cais, resolveu o problema que tanto o importunava desde a saída de salvador: fez bastante xixi e claro a outra vertente fisiológica. Assim, o tempo passava e cada vez mais, Leão conquistava a galera; todo compartimento do navio ele fuçava ora nas cobertas de cabos e sargentos, ora na coberta de proa e no convés principal na popa onde ele mais gostava de ficar. Quando o toque de Reunir Getal ecoava no Fonoclama, Leão corria para a popa e ficava comportado no meio do pessoal e dava a impressão que se ligava na leitura do Plano do Dia.


                                              O bom filho a casa retorna


         Depois de noventa dias fora de sua sede, a Corveta Purus cruza a barra de Natal e desliza suavemente nas águas mansas do rio Potengi para atracar no Píer da Base Naval. No cais, familiares da marujada aguardavam sorridentes seus pais, maridos e namorados depois de longa jornada fora de casa. Um cordão de isolamento mantinha esses familiares a uma distância segura do navio, observado por uma escolta de fuzileiros navais com seus uniformes impecáveis. Lentamente, o navio se encostava ao cais e as primeiras retinidas arremessadas de bordo eram colhidas no cais pelo pessoal da base, que dava apoio na atracação do barco. Depois dos procedimentos oficiais, a guarnição era liberada a descer ao cais e cenas comoventes eram observadas naqueles instantes. Tudo era alegria, e as crianças agarradas no pescoço dos pais não davam brecha para que as mamães matassem a saudade naqueles breves momentos.                                                                                  
E o nosso Leão considerado da casa nem de longe pensava em seu antigo lar. O canto onde vivia tinha tudo que um cão gostava: comida com ração especial, muita gente para brincar e acima de tudo era a Mascote de Bordo. O pessoal da base e navios da Força ali sediados acorria ao navio e de pronto faziam perguntas; como chegou ao navio, quem era o dono, etc. – puxa que cachorro bonito, é uma graça, - deve ter custado uma nota, não? Mas, Leão não era apenas um cachorro bonito e um grande come-dorme, não. Leão ajudava a puxar cabos, vigiava o cais contra gatos vadios que tentavam subir a prancha do navio e o mais importante de tudo: latia forte no Porta ló ante a aproximação de estranhos. É aí que a galera mais prezava principalmente os cabos de quarto que nos horários de Zero Hora as Quatro indubitavelmente cochilavam em serviço. A corveta em Natal fora de serviço entrou em PNR (Período Normal de Reparos) e daí os necessários reparos nas máquinas nos compartimentos, enfim na parte de marinha-ria foram feitos para que o navio voltasse a operar novamente. Terminado os reparos, fez viagens de abastecimento ao então Território Federal de Fernando de Noronha, patrulha marítima na costa nordeste e uma estada em Belém do Pará. Oito meses se passaram e o navio de volta a Bahia atraca novamente no cais de Salvador, reiniciando a rotina fora da sede. Um adepto de passeios buzinou para mim que já estava na hora de pedir um ônibus e dar uma passada na praia, mas eu argumentei que o encarregado dos esportes logo, logo vai entrar em contato com a Capitania e brevemente o ônibus estaria a nossa disposição. Numa manhã de sábado encosta no cais um ônibus da prefeitura de Salvador a disposição do navio. A galera muito animada dizia:- Leão vai rever o seu pedaço, - será que ele vai reconhecer o lugar? Olha, os mais precavidos achavam que voltar a Itapoã era uma temeridade, outros achavam que depois de oito meses nem Leão se lembraria do lugar nem tampouco teria alguém a reclamar a sua posse. A chegada à praia foi tranquila sem surpresas. As brincadeiras com bola e objetos atirados na água deixavam Leão feliz da vida. Pronto, a turma se imiscuía em várias atividades, cada um ia curtir a sua maneira: um grupo investia em cerveja na barraca colorida, outro grupo partia resoluto para uma barraca de acarajé Pilotada por uma opulenta baiana de tez grafite onde vendia seus quindins. Leão entre um grupo e outro provava de acarajé e dava umas lambidas num copo de cerveja na beirada da mesa. Precedendo a volta para o navio à turma sentada na areia nem ligou para um cidadão de cabelos grisalhos que se acercou de todos e apontando para o cachorro falou: - Dick, Dick! O marujo mais próximo do cachorro agarrou-se ao pescoço de Leão e tomando a direção do ônibus, pronunciou: vamos pessoal, esse cidadão não sabe o que diz. O homem insistiu, Dick!  Dick! E o pobre do animal olhava para a marujada que pronunciava bem alto o nome Leão, Leão! Nessa hora o instinto amigo superou o chamado dos marinheiros e em poucos segundos, num arranque canino, leão parte para o homem de cabelos grisalhos, levanta as patas e ganindo frenético lambe o seu legítimo dono depois de um longo tempo sem o seu carinho. A alegria do cachorro era tanta em cima do cidadão que a galera de bordo atônita aceitava a incontestável posse de (agora Dick) Leão para o seu proprietário. Nesse momento, qualquer chamado por parte dos marinheiros o cachorro nem atendia e, como um cordeiro acompanhou o senhor em direção ao seu antigo convívio. Escusado é dizer que o sentimento de perda foi enorme e profundamente frustrante para todo o navio. Durante os oito meses embarcado o pastor alemão visitou os portos do Rio de Janeiro, Salvador, Recife, Natal Fernando de Noronha e Belém do Pará. Navegou cerca de 3.000 milhas marítimas e carimbou os postes de tudo quanto é cais, exceto Fernando de Noronha que não descia a terra. O desenlace do caso do Leão não foi nada agradável, mas certamente que ficou nos anais de Casos de Marinha.
                                        
                                                                 Natal, 28/11/2006