quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Um Drama Abaixo de Zero


RB Marlin
O mar estava bom para trabalhar naquele dia de junho de 2002. Pequenas ondas batiam no bico de proa do Rb Marlin, (foto) originando pequenos balanços. Vez por outra uma vaga maior sacudia o navio com mais vigor. Era o vigésimo dia de embarque dos trinta e cinco estipulados no contrato com a empresa Astro Marítima Navegação. O cozinheiro do navio acordou às 04h30 da manhã e preparou em poucos minutos a copa e cozinha para a primeira refeição do dia. Naquele horário, somente três homens estavam de serviço: um no Passadiço, comandando o barco, o outro na praça de máquinas, (eu próprio) e o Homero como era chamado o mestre cuca, marujo antigo na empresa e que desfrutava de bom conceito do comando do navio. Muito afeito a arrumação de sua área, ele ultimava os detalhes com a louça e talheres postos à mesa para o café da manhã que seria servido a partir das seis horas. Tudo pronto deixou o compartimento da cozinha e embrenhou-se no corredor que dá acesso ao convés principal pela popa. Ele gostava muito de pescar, e quando tinha uma folga, por menor que fosse, lançava mão do carretel de linha (0,80) à cata de grandes Cavalas do fundo do mar. Diga-se de passagem, Homero, era um exímio pescador quando fora de serviço. No terceiro arremesso de sua linha, ele lembrou de que faltava algo a fazer, e incontinenti, enrolou a linha de volta ao carretel saindo célere a câmara frigorífica para retirar carne para o rancho do meio dia. Puxou a tranca da pesada porta deixando-a entreaberta, uma vez que o mar estava Espelhado, (tranqüilo) como dizemos, e lá dentro puxou um fardo de carne congelada. Um balanço mais forte do navio o fez perder o equilíbrio e com isso a robusta porta fechou o compartimento com o nosso amigo preso lá dentro.
            No passadiço o comandante conferia os instrumentos de navegação e lançava os olhos no horizonte. Pela proa via as plataformas PUB-2, PUB-3 e por boreste a uma boa distancia a PAG-2. De bombordo dava pra ver a costa de Macau por trás da PUB-15. O mar já mudara de espelhado para brando e os balanços não eram os mesmos. Cardoso, o competente comandante, pega o telefone interno e liga para a salinha - como era conhecida a copa do navio- e ninguém atendeu; minutos depois volta a ligar e fica sem resposta. Dá uma olhada no mar pela proa, ativa o Piloto Automático e resolve ir lá embaixo tomar um gole de café. Desceu as escadas de acesso aos camarotes e em seguida outro lance de escadas chegando à entrada da copa. A salinha estava vazia; não se queixou, e como sempre fazia sentou-se na primeira cadeira e pediu: - Oi, Homero, me traz um pequeno- Sem obter resposta, o austero comandante levantou-se e foi até a portinhola de acesso à cozinha, e viu que lá não estava o cozinheiro. Um pouco contrariado voltou depressa à cabine de comando desativando o Piloto Automático. Estava na hora de sair o café e o mestre Cuca não estava no seu posto. Enquanto isso o homem de serviço na máquina sobe ao corredor de acesso ao convés e vai até a copa tomar um cafezinho. O telefone interno da Copa tocava insistentemente e o foguista atendeu:
                                   - é da copa sim, não, não está!

            
            No interior da câmara fria um homem lutava pela vida envolto numa temperatura de 12 graus abaixo de zero. O seu corpo começara a absorver a temperatura ambiente que era muito baixa e o pânico tomava conta do homem. Num ato de pura infelicidade, a porta do frigorífico fechou-se para ele com um balanço do navio. No escuro e sem encontrar o botão que acionaria o alarme de gente presa no compartimento, Homero entrou em momentos de pavor. Gritava com todas as forças e esmurrava a porta estanque da Câmara. Sentia muito frio, como sentia também que o seu corpo começava a se enrijecer. Tentava se aquecer com as próprias mãos, friccionando os braços e pernas; respirava com dificuldade, pois a quantidade de oxigênio no compartimento tinha caído sensivelmente. Começou a rezar achando ter chegado a sua hora. Caído no estrado de madeira entre fardos de carne e frutas caídas das prateleiras, achou que o seu cérebro estava encolhendo, pois, já não coordenava mais seus pensamentos. Enquanto isso no convés principal, na popa, quatro homens procuravam pelo chefe da cozinha do Rebocador. Visivelmente preocupados caminharam depressa ao compartimento da frigorífica o único dos compartimentos do navio que não tinha sido ainda verificado. O comandante no passadiço avisa pelo fonoclama que o navio ia atracar na PUB-2 para receber água industrial. Os homens se dividiram em dois grupos: um foi atender o chamado do comando e os outros dois avançaram direto à câmara fria. Homero sentiu renascer ao ver que a porta se abriu bruscamente acompanhada de claridade e uma lufada de  ar quente. Sua mente voltou logo a funcionar melhor. Estava ele em uma posição de autodefesa, todo encolhido com os braços protegendo o tórax, morrendo de frio. Foi retirado às pressas e levado ao corredor para ser mais bem assistido. Perto de uma hipotermia o nosso amigo passou por todos os procedimentos de restauração da temperatura corporal e horas depois voltou a suas atividades. No comando do barco junto à empresa, ficou clara a necessidade urgente de intensificar-se o adestramento no que diz respeito à segurança e o conhecimento de cada homem das instalações de bordo.


Nota.  Esse relato é baseado em fato real. Trabalhei com o Homero muitos turnos de 35 dias no Campo de Ubarana- RN e também na Bacia de Paracuru no Ceará.
Natal, 09 de Janeiro de 2008- Mário de Araújo Monteiro.

Um comentário:

  1. Essa estória é muito boa e se assemelha mesmo a produções de Hollywood, apesar de ser verídica.

    O texto também é muito bom, continue postando!

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