Vivendo grande parte da
minha vida a bordo de navios e bases navais, muitos fatos pitorescos aconteceram entre fainas e horas
de lazer. Casos simples, diria até ingênuos, mas, diante de situações impostas
pelo serviço de natureza militar o pitoresco aí se configurava. Se não vejamos:
Em 1972 o meu navio,
Corveta Ipiranga, V 17 sediado no Terceiro Distrito Naval, (Natal, RN) largou
do cais da Base Alte. Ari Parreiras para o Porto de Santos, para fazer reparos
no motor de bombordo que estava avariado. Seria uma estada prolongada, beirando
uns três meses. Em Santos fora de sua sede o navio atracado em
cais comercial despertou a curiosidade de segundos e terceiros sargentos que pretendiam
baixar terra em trajes civis, uma vez que na época não era permitido baixar
terra a paisana. A solicitação foi levada ao comandante que sumariamente negou
as pretensões dos graduados; não estava no regulamento. (artigo 7º do RDM). O assunto foi esquecido, mas estava latente na
cabeça dos sargentos e voltou com intensidade quando o navio atracou no cais
Santista, depois de nove dias de mar. Logo após a atracação, como era de praxe,
o comandante foi se apresentar na capitania dos portos, e a bordo a guarnição
iniciava os procedimentos de rotina, como a arrumação do barco e principalmente
a baldeação.
Terminado o expediente, é dado o toque de volta as faxinas, banho e
uniforme e o esperado, Licenciado
formar. A marujada ansiosa pra baixar, terra se alinha no Portaló (sala de
recepção) e depois de inspecionada pelo oficial de serviço desce a prancha rumo
ao “Chão” sem antes fazer a respeitável continência à Bandeira nacional
hasteada no mastro de popa. No pátio do porto, afastados do navio, os marujos
descobriram um vagão de trem que pela aparência estava há muito tempo naquele
ponto. Depois de breve inspeção descobriram que o vagão estava desativado
naqueles trilhos, as rodas enferrujadas davam a entender que estava muito tempo
parado.
Resumindo, o vagão encostado serviria para troca de roupa a exemplo do
que acontecia na Rua Primeira de Março no Rio de Janeiro, os famosos “Armários” onde a marujada trocava de roupa.
Assim, por muitos dias o vagão já era o local de troca de farda por trajes civis.
Equacionou-se o problema que o comando tinha negado. Tudo corria tranqüilo a
galera saía de bordo trocava de roupa deixava-as no vagão e de lá ia pra terra,
visitar a cidade e lá pras tantas da matina de volta pra bordo fazia-se a operação
inversa, tirava o Paisano vestia a farda
e seguia pra bordo. Sempre o vagão tinha roupas, em seu bojo, era como uma extensão
dos alojamentos de bordo.
A coisa estava tão legal que alguns “Soqueiros”
(notívagos) tiravam até um “Ronco”
(cochilo) por lá. Olha, nada fica impune ou mesmo de graça quando se está na ilegalidade.
No meio da Comissão teve um feriado inopinado. A oficialidade daria uma
recepção a uma comitiva de suas relações. O fonoclama do navio anunciou:- “atenção, hoje o licenciamento será mais cedo, só fica a bordo o Quarto de
Serviço”! Claro que a galera gostou. Em poucos minutos o Portaló estava
lotado de licenciados lembrando que
os Sargentos não eram inspecionados.
Após a inspeção deixaram o navio e se mandaram pra Zona uma vez que
ninguém era Filho da Terra deixando
suas tralhas na coberta improvisada. No interior do vagão um amontoado de roupas,
cintos caxangás, tinha até pasta de dente. Já o clima a bordo era de cordialidade
e de muito bom gosto com os comes e bebes aos convidados, enquanto que na ZBM a
galera curtia batida de limão com sanduba. Na hora de voltar pra bordo à marujada
caminha trôpega e sonolenta. Na entrada
do cais um dos Soqueiros mais sóbrio
pergunta para o vigia:- “hei amigo, cadê o vagão da gente?” –“Sei que tomei uns
trecos, mas bem que dá pra enxergar
um vagão de trem.” O vigia que estava num cochilo pesado dá um bocejo e
responde com mau humor: - “Oh, não, já é a segunda vez que me acordam nessa
noite; ainda ha pouco, a droga de uma locomotiva chegou aqui no pátio recolhendo
tudo quanto é vagão velho, deve ter ido pras bandas do interior”.
A correria foi geral porque não eram
somente os segundos e terceiros sargentos que trocavam de roupa no vagão. Muitos
apavorados com o sumiço do vagão alugaram táxis e partiram para uma estação
mais na frente para reaver suas fardas e poder entrar no navio sem problemas.
Na época a regra era clara, segundos e terceiros sargentos para baixo tinham
que estar com farda para entrar e sair de bordo.
Natal, 22 de Fevereiro de
2007
Nenhum comentário:
Postar um comentário