sábado, 4 de agosto de 2012

Ilha da Trindade


Ilha da Trindade
No ano de 1976 concluí o curso de Aperfeiçoamento de Motores e Máquinas Especiais no Centro de Instrução Almirante Wandenkolk (CIAW), na Ilha das Enxadas e de lá embarquei no Contratorpedeiro Maranhão, D33 do Primeiro Esquadrão de CTs da Esquadra, o Fita Azul, que ostentava no passadiço, o símbolo ECO Barra, testemunho de sua eficiência no mar. Foi desse navio que tive a oportunidade de servir na Ilha Trindade como voluntário isso em 1978, sonho antigo que alimentava desde os tempos de Grumete. O embarque na Trindade era por um período de cinco meses, sem opção de dobrar. Fiquei concentrado na Ilha Fiscal, sede da Diretoria de Hidrografia e Navegação, cerca de dez dias com quinze companheiros recebendo informações com palestras valiosas como proceder na ilha.
            A Ilha da Trindade é a ultima porção de terra do Brasil a 1140 quilômetros de Vitória (ES) e a 2400 km da África; é lá que o Brasil começa, se baseando onde o sol nasce. Em 14 de Abril 1978 a Corveta Baiana larga do cais da DHN (Diretoria de Hidrografia e Navegação) conduzindo uma parte da guarnição da Ilha e começa uma viagem de três dias com o mar grosso e ventos fortes.
             Na corveta encontrei colegas que em outras oportunidades servimos juntos e, por isso fiz uma viagem tranqüila, porque a classe de navio me era familiar, pois já havia passado pelas Corvetas: Caboclo, Purus e Ipiranga. A estima de chegar à Ilha era para as dez horas da manhã do dia 17 de abril, entretanto, o mar muito picado concorreu para que o barco fundeasse às quatro horas da tarde. Antes de conhecer a Ilha eu não fazia idéia de como seria Trindade, mas ao chegar ao ponto de fundeio (Praia dos Portugueses), diante das rochas e paredões na minha frente e o tempo frio e nevoento que pairava no local, senti um forte temor. Aliado a essa apresentação, lembrei-me do que me passaram na DHN quanto ao desembarque para a praia, que seria por meio de uma Cabrita, nome dado a um pequeno batelão que “pulava” as ondas e que geralmente virava na arrebentação. Enfim, o desembarque foi feito sem maiores atropelos. Quando saltei na rampa fui apresentado ao sargento encarregado da Usina de Eletricidade, que seria a minha incumbência nos próximos cinco meses. O ambiente era de muito alvoroço e contentamento para os dezesseis homens que regressariam para o Rio como também para os demais que ficariam com a minha turma por mais dois meses. O sistema era assim: a metade da guarnição voltava para o Rio de Janeiro e a outra metade, com dois meses de experiência, ficava com a nova turma, servindo de guia nos meses seguintes.        A rampa na qual se procedia ao desembarque, se alargava em uma pracinha onde se via uns frondosos pés de Amêndoas e de coqueiros açoitados pelos ventos constantes.
                                          

O Perímetro Habitado

             
              Todas as construções do POIT (Posto Oceanográfico da Ilha da Trindade) são de madeira que abrigam casas do Comando e do Imediato, enfermaria e alojamentos, prédio do rancho e estação rádio, casa de força (Usina Diesel Elétrica), Rádio Sonda (Estação Metereológica) e Carpintaria que ficam numa faixa estreita de dois quilômetros limitada pela praia e a encosta dos morros. Quando estive lá em 1978, não existiam casas de alvenaria; todas as construções eram de madeira. O trânsito entre esses prédios era feito nas estreitas ruas cimentadas, com pouco mais de um metro e meio de largura. Na Trindade faltava tudo que tinha em uma cidade do continente, como carros, lojas, padaria, botecos etc., multidão ansiosa pra chegar a seu destino, postes e luminosos vendendo a marca de um produto; o grito desvairado do ambulante na informalidade. Na Trindade o silêncio é tão presente só quebrado com as ondas se precipitando sobre as pedras na praia.
            Nos primeiros dias já instalados, o Imediato do posto, promoveu uma reunião com os recém-embarcados e apresentou algumas instruções básicas de como proceder na Ilha, por exemplo: não se afastar da área habitada sem um companheiro de lado e quando o fizer informar o destino, levar sempre em seu poder uma peça de cabo, lanterna e faca de marinheiro. Nunca, sob hipótese alguma, andar descalço na ilha. Um eventual ferimento em membro da guarnição complicaria bastante a permanência dele no posto, embora existisse uma enfermaria para atender emergências e pequenas cirurgias. Em casos mais graves, o socorro teria que vir do continente a 1200 quilômetros.


O comando do POIT
                                                 

            A presença militar na Ilha da Trindade garante ao Brasil a posse do território insular. A ilha com pouco mais de oito quilômetros quadrados ocupa uma posição estratégica no Atlântico Sul. Foi descoberta em 1501 pelo espanhol João da Nova a serviço da Coroa portuguesa. Foi visitada por celebridades como o capitão James Cook e o astrônomo Edmund Halley. Pertenceu à Inglaterra, até fins do século XIX, mas por via diplomática em um Tribunal Internacional, o Brasil ficou com a posse definitiva de Trindade. O posto tem no comando um Capitão de Corveta do corpo da armada da Marinha de Guerra do Brasil e como Imediato, um oficial do corpo médico, sabiamente indicado pelos escalões superiores da Armada.
            Com o advento do ano geofísico internacional em 1957, nasceu o Posto Oceanográfico da Ilha da Trindade, POIT. Funciona em sua estrutura uma estação rádio telegráfica – PWH3 – e estação de meteorologia que coleta dados atmosféricos e os envia diariamente para a DHN.
                                                   

Primeira Incursão
                                  

            Os primeiros dias foram para reconhecimento das instalações e fazer novas amizades. O barracão do alojamento era dividido em dois compartimentos onde alojava sargentos e marinheiros e também uma sala de lazer com poucas opções de entretenimento. O expediente ia das 07h30 às 11h30. Não havia atividades no período vespertino e cada um escolhia o que melhor fazer.
            No meu caso, às 07h30 eu ia para a Casa de Força com meus dois auxiliares colocar os motores em funcionamento e fazer a manutenção nos demais equipamentos. O fornecimento de energia ia até às 14h, voltando a funcionar das 17h às 22h, quando então a ilha ficava as escuras até o início do expediente no dia seguinte. Era uma medida de economia adotada pelo comandante uma vez que a nossa cota de óleo diesel era de 5.000 litros até o próximo abastecimento, sessenta dias depois. Tínhamos na casa de força, uma câmara fria com capacidade para uma tonelada de carne sendo que as geladeiras do posto funcionavam a querosene a exemplo dos aquecedores de água para banho. O rancho funcionava em um barracão vizinho a carpintaria na Praça Nossa Senhora de Lourdes, padroeira da Ilha. Depois de quinze dias de permanência no posto, dava para sentir a ausência da vida agitada da cidade. Todo começo de uma cabritada (termo usado para o período de cinco meses), as refeições são normais tendo em vista o reforço de alimentos vindo do Rio de Janeiro, mas existia certo controle na distribuição, porque ao desembarcar na ilha, perde-se no mar boa quantidade de mantimentos ao transpor a arrebentação. Assim, dias pra frente o rancho perde quantidade e chega-se a cogitar um racionamento. Na minha cabritada, muita coisa foi tragada pelas ondas e boa parte que chegou a terra vinha totalmente encharcada de água.

            No início, o grupo fez as primeiras incursões fora do casario, pois ainda não havia passado dos limites das casas entre o rancho e a estação metereológica, em torno de dois quilômetros. Subimos uma encosta, cerca de cem metros de altura onde fica o cemitério local, com quatorze cruzes, referência aos que morreram na ilha, entretanto, são cruzes simbólicas. Na subida ao cemitério, muita beleza se apresentava a cada passo que se prosseguia nessa incursão. Dessa pequena elevação dava para observar o posto lá embaixo, com o casario todo branco. O solo em Trindade é extremamente acidentado onde nas partes mais baixas proliferam centenas de blocos de pedras de todos os tamanhos que certamente rolaram das partes mais altas em possíveis avalanches. A impressão que se tem é assustadora diante da diversidade de elementos a vista, assim como dos morros e picos gigantescos de expressivas altitudes. Para quem vinha de um aglomerado urbano como o Rio de Janeiro, tudo aquilo era um mundo novo, irreal.
Gruta N. S. de Lourdes
            Completando a nossa missão exploradora, avançamos morro acima pelas trilhas íngremes até a gruta Nossa Senhora de Lourdes, beirando a duzentos metros de altitude e, confesso, foi o ponto que mais me chamou a atenção. A caverna é a maior dentre muitas que existem na ilha, tem cerca de trinta metros de profundidade e alturas internas variando de quatro a oito metros. Dentro dela a escuridão é predominante deixando a todos muito impressionados com o ambiente que se torna solene e austero, mas aos poucos a gente vai se envolvendo com a paz que envolve aquela gruta. No seu interior existe um tesouro; nada de baú com colares de pérolas e moedas de ouro, mas um pequeno acervo histórico como a imagem de Nossa Senhora de Lourdes e as inscrições feitas nas rochas pelos presos políticos do levante do forte de 1922. Entre os nomes gravados (pelos próprios) nas rochas está do então capitão Juarez Távora, militar do exército figura expressiva da política brasileira por mais de quatro décadas. Ainda no seu interior, guarda lembranças e mensagens das primeiras guarnições que passaram pela Ilha: são placas, quadros mensagens desenhadas e escritas e mensagens de agradecimentos à Santa, guardiã da Ilha por um milagre alcançado. Outra coisa que chama a atenção do visitante é uma fonte de água límpida que emerge das frestas das rochas e de sabor inigualável.


A Rotina
                                                 

Antena da Rádio Sonda
            O tempo passava lentamente naquele inóspito pedaço de terra no meio do Oceano Atlântico, e seu contingente humano já se ressentia do isolamento a que estava submetido. Alguns homens se mostravam soturnos, arredios, enquanto outros com expressões graves e de barbas crescidas não escondiam a apatia que lhes envolviam. Quando o sol dava lugar ao crepúsculo (hora do banzo) a nostalgia assomava a todos nós e cada um tinha a sua maneira de viver àquelas horas tão marcantes. Era o momento de descer ao rancho, e pra chegar lá saindo do alojamento, seguia-se por uma pequena descida de nome Chora na Rampa. Jantar simples e cardápio repetitivo mantinham o pequeno grupo no mais completo mutismo. O silêncio só era quebrado com o encontro de pratos e talheres. Cada sargento, cabo ou marinheiro naquele jantar singelo, guardava consigo suas preocupações que ficaram no continente. Quando larguei do Rio Janeiro rumo à Trindade deixei a minha família; mulher e dois filhos sendo a caçula com três meses de idade. Outros companheiros também tinham suas preocupações e com isso o ambiente era de desânimo e de recolhimento. À noite, eu procurava ler o que trouxe do Continente e rotineiramente anotava o que tinha feito durante o dia. Na sala de lazer, jogos de salão como Damas, Tênis de Mesa e Xadrez, ajudavam a passar o tempo, mas o Aliado ( jogo que se pratica com dados) era o mais procurado isto por ser inventado na Marinha de Guerra. O importante naquela oportunidade era fazer alguma atividade, manter-se ocupado a exemplo de Robinson Crusoé do romance de Daniel Defoe, que viveu por muitos anos numa ilha deserta no mais triste isolamento.  Assim a gente pescava, jogava futebol e fazia caminhadas para ocupar o tempo; até atividades amenas como trabalhos artesanais e pintura com areias coloridas. A pintura que me refiro é uma técnica desenvolvida na ilha que consiste em misturar areia em tinta que depois de seca e peneirada adquire a cor desejada e daí aplicada com cola em telas.          A areia preta não passa por esse processo, mas é encontrada In Natura na Praia do EME no noroeste da ilha. A característica principal da areia preta é que ela é um minério de ferro com forte teor de magnetismo em sua constituição. Com essas e outras atividades o tempo seguia o seu curso lento e rotineiro. Um passatempo que se tornou prazeroso era a pesca do Xarel no local denominado Parcel, distante do Posto cerca de quatro quilômetros. Para chegar lá era uma verdadeira maratona escalando encostas e blocos de pedras e o que era mais cansativo, atravessar as areias da Praia das Tartarugas. Éramos um grupo de cinco pessoas invariavelmente, todas equipadas de anzóis e iscas de sardinha pescadas na praia da Calheta. A praia do parcel como era conhecida, não era apropriada ao banho, tinha muitos escolhos de portes variados formando o nosso pesqueiro um ponto extremamente perigoso. A pesca era proveitosa: entre peixes de pequeno porte à Xaréus e Garoupas de dez a vinte quilos. Quando a maré estava cheia, as ondas arrebentavam nos arrecifes com muita violência obrigando a nós pescadores procurar um lugar mais seguro. Se a ressaca do mar continuava, o grupo cautelosamente empreendia a volta ao Posto. Nesse lado da ilha fica o Pico do Paredão com 217 metros de altura, onde em sua base tem um túnel feito pela natureza com cerca de quarenta metros de extensão mostrando o mar do outro lado. Esse túnel teria aproximadamente oito metros de diâmetro.
            Na Trindade existem coisas curiosas dignas de reflexão, especificamente no que diz respeito ao mar com a aproximação do homem na beira da praia. Certo dia, eu e um companheiro tentamos dar a volta na base do Paredão aproveitando a maré baixa para ver a saída túnel do outro lado. O mar estava liso sem ondas, como dizemos um mar espelhado. Da plataforma onde estávamos para a linha dágua daria sem dúvida dois metros de altura, e de repente o mar baixou mais ainda e em seguida toda a massa dágua cresceu chegando a alagar a plataforma onde a gente caminhava. Era como se tivesse vida, era como quisesse nos arrebatar para suas profundezas. O pavor desmedido foi o combustível que nos tirou imediatamente daquele lugar.  Sem entender aquela mudança abrupta empreendemos a volta imediata para a nossa base.
            Por mais de cinqüenta dias, já familiarizado com tudo que a Ilha oferecia, o tédio foi cedendo ao otimismo e a alegria de viver num lugar tão rude e de beleza indomável.
                                                     

Sou Licença
(Segunda Parte)


            No começo de Junho, era grande a expectativa ante a chegada do navio abastecedor que traria com sua carga principal, noticias e encomendas dos familiares. A vinda de gente nova era outro fator de alegria, que dava a gente com mais de sessenta dias reclusos no meio do Oceano Atlântico. Escusado é dizer do reboliço e contentamento no desembarque da nova turma. Os novatos vindos do Continente, de traços urbanos, cabelos rentes e de rostos imberbes, contrastavam com os Insulares de barbas crescidas e peles trigueiras esbanjando vitalidades já adquiridas do clima da Ilha.             Recebi uma caixa de madeira contendo cartas, revistas, e um gravador de Fita Cassetete com uma mensagem gravada de minha esposa. Foi um momento muito alegre saber que tudo andava bem com os meus lá no Rio de Janeiro.
Quando o navio largou levando parte da turma que completou quatro meses na Ilha de volta a terra, a minha Cabritada (turma) assumiu a antiguidade do POIT. É tradição a vésperas de uma turma retornar para o Continente se fazer uma despedida festiva com discursos, trocas de presentes, menções de feitos relevantes e para culminar com o evento, é feita a cerimônia de passagem do Bastão de Comando. O oficial que deixa a Ilha, solenemente passa o Bastão Sou Licença ao oficial que fica, e este erguendo o Bastão exclama alto e bom som:- Eu Sou Licença! Ironicamente faltando mais de sessenta dias para um navio vir buscar a turma. Enquanto nós que estávamos ambientados no Posto, enchia de perguntas aos novatos sobre o Rio, o que aconteceu de vulto na cidade e até notícias do mundo, em contrapartida os novatos faziam perguntas sobre a Ilha. Naquela época não tinha Televisão no POIT e o Rádio mal sintonizava uma estação. Somente uma emissora do Brasil pegava bem durante a noite naqueles confins; a rádio que ficou célebre no país inteiro quando o locutor com voz empostada anunciava:- Pernambuco falando para o mundo, emissoras...
            Aos recém-chegados era passado tudo que aprendemos nos últimos sessenta dias, assim como ganhamos as experiências da turma que se foi. Por exemplo, o trato com os caranguejos torna-se uma lição básica uma vez que eles povoam toda a área habitada. Aos milhares infestam alojamentos, rancho, carpintaria até gavetas de armários etc., e quem anda pela primeira vez nos estreitos caminhos do Posto se assusta com aquele imenso tapete de crustáceos que não se intimidam á nossa passagem. Ensinamos aos novatos que passar por cima deles é uma questão puramente normal. O aparecimento de milhares deles ocorre principalmente após um Pirajá que são chuvas inopinadas que caem a partir de maio. Segundo o chefe da Estação Metereológica do POIT, são as chamadas chuvas orográficas, ou chuvas de relevo formadas na própria Ilha e que aqui mesmo se precipitam.
            Os pontos mais famosos como Praia da Galheta, das Tartarugas, Praia das Cabritas, do Príncipe e Praia do EME e a praia dos Portugueses onde fica o POIT, é tudo mencionado para quem chega. È mencionado também os picos que se destacam na paisagem da Ilha com pouco mais de 8.3 quilômetros quadrados abrigando treze montes de expressivas altitudes, um deles passando dos 600 metros; o Pico do Desejado o ponto culminante da Trindade.


 O Pico do Desejado


Pico do Desejado
            Quando um membro da guarnição está integrado com os meandros da Ilha passa a encarar desafios mais ousados, a ver sem temor obstáculos que antes seriam intransponíveis e se aprofundar em pontos mais difíceis e um desses desafios é chegar ao Pico do Desejado (602m). Quem passa pelo POIT e não vai ao Teto da Ilha é o mesmo que ir a Roma e não ver o Papa. È como o lugar mais alto do pódio em uma competição esportiva.  Para se chegar ao cimo tem que se transpor uma série de trilhas, a maioria delas apagadas e outras demarcadas com cal, escalar barreiras e escarpas e passar colado em uma parede que forma o Valadão. Esse trecho é o resultado da erosão que se formou ao longo do tempo, um rasgo gigantesco no centro da Ilha. Para mim, foi o ponto mais crítico da caminhada até o topo. A 450 metros de altitude tem-se acesso a uma localidade conhecida como Cela onde o terreno forma uma espécie de praça que se apraz a descanso e o mais importante á observação dos acidentes da Ilha lá embaixo: Morro do Paredão, Praia do Príncipe, Ponta dos Farilhões, Praia das Tartarugas e bem distante, 40 milhas náuticas a Leste, o arquipélago de Martim Vaz, tudo visto em pequenas dimensões em virtude estarmos acima desses acidentes a mais de 400 metros de altitude. A beleza de tudo lá embaixo é indescritível. Sentados naquela altitude ninguém se atrevia a falar, bastava ver tudo e se conscientizar que poucas pessoas no mundo têm o privilégio de estar num universo tão surpreendente. A Subida prossegue em Zig-Zag serpenteando bases de morros e quando não, praticando alpinismo amador. O preparo físico foi determinante nessa aventura.
            Finalmente alcançamos o Ponto Culminante da Ilha da Trindade! Exaustos e muito emocionados, exultamos aquela conquista. Guardando as proporções, é como um montanhista alcançar o Pico da Neblina com 3014 metros de altitude, o ponto mais alto do Brasil no noroeste do Estado do Amazonas. Ali no topo da Ilha eu observei a vastidão do Oceano, formando de onde estávamos uma circunferência colossal. Eu me imaginava o vértice de tudo aquilo. Para deleite do grupo encontramos naquele ponto uma matinha com plantas e arbustos um espetáculo de rara beleza. Explorando a área, encontramos as decantadas Samambaias Gigantes de até seis metros de altura remanescente da flora devastada desde as primeiras ocupações, e como representante da fauna, proliferavam lá em cima os caranguejos gigantes (encontrado somente no Desejado) diferente dos crustáceos amarelos da parte baixa da Ilha. Via-se também no topo de um morro abaixo conhecido como Fazendinha, um pequeno bando de ariscas Galinhas D’angola popularmente conhecidas no nordeste brasileiro como Guinés. O nosso grupo teve o privilégio de assistir a um espetáculo belíssimo de múltiplos Arco-íris lá embaixo encobrindo a parte habitada, motivado pelo Pirajá que desabava naquela hora.
            Satisfeitos, esbanjando muito orgulho por ter alcançado o ponto mais famoso da Ilha o grupo desce sem problemas até o nível do mar. Eu particularmente estava exultante e querendo logo anotar a Invasão do Desejado.
                                                                  
                                                   
Curiosidades


Túnel do Paredão
            Com o passar do tempo na Trindade, tomamos conhecimento de fatos pitorescos e até inimagináveis. Comentando sobre A Rotina fiz referencia ao fenômeno das águas na praia com a aproximação de uma pessoa notadamente nos lugares ermos como presenciei na base do morro do paredão onde existe um túnel. Dessa feita me refiro a Pedra da Garoupa localizada na Praia do Príncipe. Essa pedra ficou temida e conhecida pelo triste episódio envolvendo dois membros de guarnição anterior a nossa, que perderam suas vidas quando pescavam sobre ela, daí estigmatizada como Pedra da Garoupa. A sua posição na praia com maré baixa é um convite para subir ao seu topo (3 metros) e jogar a linha na água. Junto com outros companheiros a curiosidade nos levou até lá.         Para chegar à praia do Príncipe onde fica a pedra, faz-se uma descida de 200 metros em uma encosta de declive acentuado parecendo mais uma parede e o surpreendente nesse sitio é um cheiro muito forte de enxofre por toda sua extensão, aliás, essa área se estende ao morro do paredão onde existem crateras do vulcão extinto. Ficamos na beira dágua observando as inscrições gravadas na face da gigantesca rocha: duas estrelas e duas cruzes, princípio e fim de dois guardiões do POIT.  O mar estava calmo e as águas chegavam à beira dágua em fluxo e refluxo bem de mansinho. Absortos, com os olhos grudados na pedra, inesperadamente fomos surpreendidos por uma carga dágua que nos empurrou para terra firme. Eu particularmente tive receio de ficar naquele lugar, pois aquilo me lembrava do que aconteceu na plataforma do Túnel. Outro fato semelhante ocorreu na Praia das Cabritas no norte da Ilha onde existem piscinas naturais de águas transparentes. Com a minha proximidade das águas, o mar que estava manso foi aos poucos aumentando o vai-vem das ondas, e surpreendentemente o local ficou ressacado o que me fez sair prudentemente daquele lugar. São coisas assim que fazem da Trindade um lugar surpreendente e fascinante.    A Ilha está plantada naqueles confins a milhões de anos e o contingente humano que pisou o seu solo em épocas remotas deixou a nefasta marca da devastação de sua flora. Até parece que esses fortuitos incidentes são uma represália do mar às guarnições contemporâneas.


Praia das Tartarugas


Carona de Tartaruga
            A Praia das Tartarugas, segundo biólogos, é um ponto de desova desses quelônios e a Trindade é sempre visitada por elas deixando cada uma cerca de 130 ovos enterrados na areia. Realmente é a única praia na ilha que tem uma extensão muito grande de areia. Movidos pela curiosidade fomos ao local a noite munidos de lanternas e bem agasalhados, uma vez que fazia frio, mais pela rajada de vento que soprava na hora. Se chegar a essa praia com a luz do sol era difícil, pior ainda durante uma noite sem lua. Caminhando em fila indiana, transpomos as barreiras naturais até pisar as areias fofas do sítio dos quelônios. Acendemos nossas lanternas e varremos o lugar com fachos de luz. Encontramos facilmente uma enorme representante acabando de cobrir com areia o buraco onde tinha deixado seus ovos. Fomos ao seu encontro checar de perto. Era um belo exemplar de tamanho, e de peso, que teria aproximadamente setenta quilos, a cabeça e o pescoço de grandes bitolas insinuavam uma tartaruga adulta. Para tirar fotos foi preciso deixá-la de barriga pra cima até o dia seguinte para aproveitar a luz do dia. Depois das fotos ajudamos à centenária (?) tartaruga seguir rumo ao mar deixando atrás dela o rastro sulcado pelas longas barbatanas.


Caça ao Bode


            Quando ainda concentrado na Ilha Fiscal comentava-se sobre cabritos na Trindade, que viviam em estado selvagem em alguns pontos e grotões. Sabe-se que esses animais foram deixados pelos portugueses na tentativa de colonizar a Ilha, mas essa ocupação não durou muito. Para nós de guarnições contemporâneas, sabemos que na Primeira Guerra Mundial (1914-1918) a Ilha foi guarnecida Militarmente e esses animais foram levados para lá e desde então se multiplicaram a ponto de contribuir com a destruição da flora nativa.
Caça ao Bode
             Quando estive na Ilha em 1978, existiam três rebanhos em pontos distintos: um para os lados do Pico do Galo, outro na região central da Ilha e mais um que vinha dos penhascos da praia do príncipe, portanto na minha época a população dos caprinos estava sob controle. Ariscos por excelência, entretanto, quando a fome apertava, esses bandos desciam dos morros a procura de amêndoas e gramíneas, bem perto das casas, mas isso somente tarde da noite.  Um belo dia solicitei do comandante da Ilha, uma licença para fazer uma caçada.  A licença foi dada, mas com uma restrição: apenas um pente de cinco projéteis. Combinei com um colega para a noite do dia seguinte a caça ao bode.
             O alarme do despertador me pôs de pé ás quatro horas da manhã, e em cinco minutos eu já descia as escadas do alojamento portando faca, lanterna, uma boa peça de cabo e um fuzil municiado com um pente de balas. O meu companheiro não trazia fuzil, apenas lanterna e cabos de manilha como reforço. Enquanto me afastava do casario a barra do dia surgia no horizonte facilitando assim a minha busca. Depois de atingir o morro N. S. de Lourdes, fiz uma parada para descanso e ver o terreno pela frente. O dia já tinha chegado e de repente o meu colega me chama a atenção apontando para um bando de cabras que distava uns trezentos metros morro acima. Cautelosamente procuramos abrigo atrás de uma rocha e ficamos observando seus movimentos. Era um grupo pequeno, em torno de vinte cabeças lideradas por um bode branco de bom tamanho, que desconfiado levantava a cabeça olhando para os lados, enquanto os demais indiferentes ao perigo pastavam sossegados. Entre eles uma cabra com seu filhote ao lado que saltitava a todo instante não dando descanso às tetas murchas da mãe. Eu tinha pressa em fazer o ataque porque já estava dia claro e certamente eles arredariam daquele lugar a qualquer momento. A distância não era problema, mas o cabritinho vez por outra se interpunha na frente do bode marrom, o meu alvo. Apoiado em uma pedra tomei a posição de fogo esperando tão somente que o cabritinho saísse da linha de tiro.   O estampido rompeu o silencio, ecoando nas grotas como se fosse uma concha acústica natural. O bando em desabalada carreira sumiu no meio de blocos de pedras deixando para trás o bode marrom. Larguei fuzil e os apetrechos correndo morro acima para não perder de vista aonde o bode presumivelmente teria sido atingido. Encontrei-o caído cerca de cinqüenta metros de onde estava com o bando. Era um cabrito velho a julgar pelos chifres retorcidos e uma carapaça no peitoril onde teria pêlo quando jovem. Exalava um cheiro forte característico dos machos de sua raça. Amarramos suas patas e improvisamos com o fuzil uma maneira de transportar o bicho até o posto. Lá embaixo a curiosidade foi geral. O bode marrom foi o único abatido (só um tiro) durante a minha cabritada de quatro meses e vinte e três dias.
           

Tubarão Encalhado


Tubarão no Seco
            Eu estava fazendo a manutenção do motor MWM2, na Casa de Força, trocando os filtros de combustível, e de óleo lubrificante e ajustando a correia da bomba dágua, quando soou um grito do lado de fora da minha incumbência; esse grito vinha da Praia da Calheta. Deixei os filtros em uma bancada, e caminhando com pressa assomei a rua deparando com um colega que vinha da praia gesticulando dando conta de que algo estava acontecendo. Chegando à praia vi uma cena inusitada, aonde dois marinheiros lutavam bravamente com um tubarão que enlouquecido tentava voltar à água após ter encalhado nas areias da Calheta. Juntei-me ao pequeno grupo e com auxilio de um pedaço de ferro e uma enxada atacamos o tubarão, que mesmo fora do seu elemento oferecia um grande risco ao debater-se ferozmente. Outro marinheiro reforçou, o nosso grupo com um cabo de nylon e com isso laçando a cauda da fera tirando-o o quanto antes da beira dágua.
            A explicação para o encalhe é que ele perseguia um cardume de sardinhas que sem saída chegou às águas rasas e ao transpor a arrebentação o Tubarão Lixa (?) com a barriga na areia não teve como voltar para o mar aberto. Aliado a sua falta de sorte, ainda foi empurrado para a praia por uma grande onda que vinha atrás dele. O acontecimento chamou a atenção de todos, pois a praia da Calheta fica no perímetro habitado, e logo se formou um grande circulo de gente em torno dele.  Tinha cerca de noventa quilos nos seus dois metros e quinze centímetros de comprimento. Foi fotografado antes de ser cortado em postas graúdas. O nosso Imediato, o doutor Portugal um médico de renome na marinha brasileira, que vivia recluso na sua casa cercado de pilhas de livros científicos, quebrou sua própria rotina se misturando aos curiosos e de pronto fazendo um pedido, próprio de um homem de ciência: pediu ao Magarefe de ocasião que tirasse com cuidado o cérebro do peixe, e sendo atendido voltou para sua casa para estudar os miolos do Lixa. E a gente naquele fim de mundo não sabia que estava entre nós um dos maiores nomes do corpo médico da Marinha Brasileira.


Jornal do Dia


Campo de Futebol
            Faltando pouco mais de um mês para o fim da comissão, fomos surpreendidos por um acontecimento jamais esperado, mesmo porque estávamos a 1140 quilômetros do continente. Naquela tarde, formamos um pequeno grupo e mais uma vez tomamos o caminho da praia do Parcel pescar o Xarel, pois era o peixe que mais aparecia naquele pesqueiro. De repente um som muito estranho foi surgindo e aumentando em nossa direção e custava acreditar que seria de avião. Eu no momento, pego de surpresa, pensei tratar-se de uma avalanche porque dias antes tinha acontecido nas encostas da praia das Tartarugas um deslizamento de enormes blocos de pedras originando um violento estrondo. Assustados, paramos e com os olhos pregados no céu vimos três pontinhos à baixa altitude em nossa direção.    
           
Estávamos atravessando o campo de futebol na praia dos Andradas. Os três pontos em poucos instantes tomaram forma de três aviões voando baixo passando sobre nossas cabeças a uma velocidade espantosa desviando do morro pela frente tomando o caminho de volta a Ilha. A correria foi geral, cada um se abrigou como pôde no descampado das laterais do campo; o marujo que trazia a lata cheia de sardinhas tropeçou nas pedras a sua frente derramando pelo chão todas as preciosas iscas. Outro marujo mais assustado corre na direção da Base, o terceiro pensando tratar-se de um ataque aéreo deitou-se no chão protegendo os ouvidos com as mãos em conchas. Foi quando surgiu outro avião dessa vez voando mais baixo deixando cair no centro do campo um fardo volumoso que lembrava uma bomba, mas aí deu para ver que se tratava de um avião da FAB e que talvez estivesse deixando uma carga para o POIT. Acorremos ao pacote levando-o até ao comando. Realmente era uma esquadrilha da FAB de passagem pela Ilha cumprimentando o Posto, e deixando para nós livros, revistas e Jornais do dia da cidade de Vitória-ES. Incrível! Jornal do dia naquele fim de mundo.  Foi um grande momento que atingiu a todos indistintamente, do mais moderno ao Comandante. Lembro-me que a ultima leitura atualizada que fiz de um jornal, passava dos noventa dias, justamente quando saí do Rio de Janeiro. Imagino que nos dias de hoje, exista na ilha antenas parabólicas, televisão de ultima geração e os imprescindíveis telefones celulares. 



Olimpoit


Olimpoit
             O exemplo das Olimpíadas no continente inspirou as autoridades da Marinha a promover na Trindade a OLIMPOIT, (Olimpíadas do POIT). Com participação de toda a guarnição, afinal de contas o destacamento com pouco mais de trinta pessoas foi possível distribuir as modalidades esportivas com muito sucesso. As competições nos jogos coletivos não eram simultâneas; quando terminava uma prova os mesmos atletas formavam outras equipes em outras modalidades. Assim, teve jogos de futebol, voleibol, uma corrida de dois quilômetros jogos de salão e o famoso cabo de guerra. Os jogos foram muito disputados, mas o número de torcedores é que chama a atenção pela reduzida quantidade de gente, basta ver que duas equipes de futebol de campo empregam setenta e cinco por cento de todo o destacamento, mas nem por isso deixou de ser alegre e muito divertida. A Olimpoit foi um sucesso, transcorreu em um clima de camaradagem e com a predominante disciplina que  norteia os militares.
            
                                                                                           
Ilha isolada


            A Ilha da Trindade, pela sua posição geográfica no Oceano Atlântico, está fora de rota de navios e aviões. Separada da costa de Vitória-ES (1140 km), a distancia faz da ilha a porção de terra mais isolada do Brasil. Assim, são raros os casos de navios que aportam em suas águas ou aeronaves que entrem em seu espaço aéreo, exceto os navios da marinha de guerra que fazem abastecimento do Posto Oceanográfico a cada sessenta dias. Em casos especiais, com permissão da marinha, a ilha recebe visitas de biólogos, universitários e cientistas com propósitos definidos de suas áreas de atuação.
            Entretanto, casos esporádicos levam navios perdidos à ilha como aconteceu no mês de julho com um yate que saiu da Inglaterra com destino a América do Sul, mas enfrentou três dias de calmaria e empurrado pelas correntes marinhas deu com os costados nas águas de Trindade.
            Era uma manhã de sábado quando foi visto um alvo no horizonte. Toda a guarnição em pontos diversos da base procurava se certificar o que delineava o limite da ilha, uma vez que as nuvens baixas dificultavam a identificação da inesperada visita.     Hora e meia depois deu para ver que se tratava de uma pequena embarcação e que aparentava ter problemas para chegar a enseada. O comandante do POIT deu ordens para alguns homens ocupar pontos estratégicos na praia, no sentido de orientar com semáforas e bandeirolas o yate que fundeou muito longe da rampa. Via-se que foi arriado um pequeno bote A medida tomada visava salvaguardar dois tripulantes da pequena embarcação que se aproximava da praia. O mar estava bravo, e na arrebentação se formavam grandes ondas que revolviam o fundo do mar cheio de ouriço. Tentamos mostrar para os visitantes por meio de sinais o perigo que os esperava no fundo da praia. . O pequeno bote se aproximava da arrebentação; eu e mais três companheiros com água pela cintura e guarnecidos de bóias, esperamos o pequeno bote transpor o ponto crítico, formador de ondas. Não teve como evitar que o bote virasse jogando seus ocupantes na água. Convém dizer que cada um de nós estava ligado a terra por meio de um cabo de segurança, pois corríamos o risco de ser arrastados pelas ondas. Um dos homens do bote ao cair na água, demorou vir à tona, e nesse momento eu arremessei a bóia circular em sua direção. Demorou uns quinze segundos para o visitante emergir das águas respirando avidamente o ar que reencontrou na tona. Desesperado, agarrou a bóia com tal firmeza que nada no mundo o faria largar dela naquela hora. A turma de terra mantinha esticado o cabo que me dava suporte na operação. Agarrei o homem pelo colete salva vida e deixei que o pessoal da retaguarda nos arrastasse para a areia. O outro visitante passou pelo mesmo problema, visivelmente atordoado e demonstrando que tinha rolado pelo fundo coberto de ouriço do mar
            No ambulatório, o enfermeiro fazia curativo nos dois gringos que estavam com os corpos e pés em petição de miséria, o que confirmou nossas suspeitas de que vinham descalços. Relataram para o comandante que faziam uma viagem de recreio da Inglaterra para a América do Sul e que no trajeto entraram em uma zona de calmaria por mais de três dias e que o motor de bordo estava com problemas mecânicos. Levados por correntes marítimas chegaram até a ilha brasileira. Desorientados e com problemas de suprimentos, a costa da ilha foi uma dádiva para eles. O comando do POIT prestou assistência em todos os sentidos, como suprimentos, assistência médica e orientação náutica fornecendo uma derrota segura para a costa de cabo frio.


Volta pra casa


            Em meados de agosto, começaram os preparativos para voltar ao Rio de Janeiro. Muita coisa tinha que ser feita para embalar o material adquirido na Ilha. Existia uma norma que regulava a saída de material, como exemplo: peças de bronze retirado do casco soçobrado do CTE-Beberibe que encalhou em 1966 na Praia dos Portugueses, transporte de animais vivos como cabritos porcos e galinha como também pedras exóticas, areia imantada, etc. A organização do Posto construiu um carangueijal para toda a guarnição e cada homem tinha o seu próprio. Em confinamento e bem alimentados os caranguejos amarelos ganhavam peso naquelas gaiolas. Era assegurado para cada homem o direito a três caixotes de madeira para levar o que bem entendesse da Ilha. Fora dos caixotes só com permissão especial, no caso bodes, porcos e galinhas (encarregados da pocilga e da granja Eliane). Eu particularmente ocupei as minhas caixas assim: Uma contendo pedras esculpidas pela natureza, um cantil com água da fonte da Santa e areia imantada da praia do EME, outra contendo peixe salgado e a terceira caixa, uma centena de caranguejos. O movimento nos alojamentos e nas incumbências era de notória euforia, o semblante de cada homem mudava física e psicologicamente da noite para o dia. A maioria tinha tirado a barba e cortado o cabelo. A expectativa naquelas horas era com a chegada do navio que a qualquer momento ia surgir no horizonte.


NHI-Canópus


NHI-Canópus
            Em 20 de Agosto de 1978 o navio hidrográfico Canópus fundeou na enseada dos portugueses trazendo mantimentos e uma nova turma que ia ficar no nosso lugar por quatro meses. Contendo a emoção de voltar para casa depois de quatro meses, fiz um balanço da minha estada na ilha desde o primeiro dia quando desci na rampa no mês de abril. Fiquei conhecendo os grandes acontecimentos que envolveram guarnições anteriores, e os fatos relevantes da história da Ilha: Portugueses, Ingleses, caçadores de tesouros, as ocupações militares presídio     político, Ano Geofísico Internacional em 1957, quando se instalou em definitivo o Posto Oceanográfico da Ilha da Trindade, POIT. Relembrei também o fato de que a Ilha foi visitada por OVNIS em 1958 que causou um reboliço muito grande na imprensa brasileira. Tudo passava como um filme: Vasculhei um bom pedaço do solo entre morros e beira de praias, pescando, caçando, jogando bola e boa parte do tempo na minha incumbência fazendo a manutenção dos equipamentos. A gruta N.S. de Lourdes, Praia do Príncipe e a pedra da Garoupa; a escalada do Pico do Desejado foram momentos marcantes que ficarão para sempre na minha memória, como também os dias de isolamento de trabalho e apreensão, e de esperar a qualquer momento a ilha ser sacudida por um abalo sísmico. Isso depois de um deslizamento de blocos de pedras nas encostas da praia das tartarugas.
            Finalmente, depois de cento e vinte dias fiquei fora da ilha, quero dizer, via a ilha de um ângulo longe dela, de bordo do navio que me levaria de volta ao continente.   A sensação era de muita ansiedade, muita alegria, era a sensação do dever cumprido. Passar por muitos obstáculos, conviver com o perigo lado a lado vinte quatro horas por dia e sair daquele lugar ileso.
            O embarque no NHI Canópus se fez pela Cabrita, aquela pequena embarcação que pulava as ondas. O transbordo do pessoal da Ilha para o navio foi feito em três etapas até o ultimo homem.


Uma tragédia
                                                                                                    

            A guarnição do Canópus, muito receptiva, nos acomodou mostrando as dependências do navio: cobertas, sala de refeições, banheiros e demais compartimentos, facilitando assim nossa convivência a bordo para os próximos três dias até o Rio de Janeiro. Cumprindo um cronograma de viagem, o navio sem perda de tempo inicia os procedimentos para largar após o cerimonial à bandeira. O sol, alinhado com o horizonte, se escondia na curva da terra deixando a Ilha no crepúsculo vespertino.
            Como era de se esperar, encontrei um amigo a bordo, o Segundo Sargento, Paulo Tavares de Miranda, parceiro de outras comissões: CIAW, Base Naval de Natal, Corveta Caboclo, da extinta Forpacone, (Força Patrulha Costeira do Nordeste). Na sala de refeições, botamos a conversa em dia enquanto aguardava a saída do jantar e de repente ecoou uma mensagem no fonoclama nos termos bastante familiar para mim:- Guarnecer Detalhe Especial Para o Mar, (DEM). Acostumado com tudo aquilo, eu sabia que em seguida a guarnição ocuparia seus postos- chaves como: timoneiro no passadiço, condutores motoristas nas praças de máquinas e principalmente a faxina do mestre na proa para suspender o ferro. (âncora).         
             Não demorou muito e um estalo forte estremeceu o navio, que da sala de refeições onde estávamos, deu para ouvir que um cabo de aço tinha se partido no convés. Passaria até despercebido uma pancada em meio a uma faina geral, entretanto a gritaria que se seguiu de ordens desconexas, deu para entender que algo muito grave tinha acontecido. O Tavares e eu acompanhamos toda aquela gente que passava pelo corredor que dá acesso ao convés principal. Lá, ficamos sabendo que um marinheiro da guarnição do navio tinha caído no mar na manobra de içar (subir) a lancha para o seu berço no convés. Um membro da equipe de mergulhadores ainda pulou na água na ânsia de salvar o inditoso marujo que em poucos segundos depois da queda no mar, lançou o ultimo grito de sua vida: - valei-me nossa senhora! Uma máscara de terror cobriu os rostos de quem estava na faina. O navio já ia se movimentar com suas potentes hélices quando o predador implacável, a fera mais terrível dos oceanos (tubarão) puxou para o fundo do mar o bravo marujo da guarnição do Canópus. Muita gente na popa olhava para as águas na esperança de vê-lo boiando, entretanto já estava escuro, não dava mais para enxergar naquelas condições. O fato foi comunicado a Diretoria de Hidrografia e Navegação-DHN- órgão da marinha a que está subordinado o POIT. Na ilha, já informada do acidente, foi criado grupos de homens munidos de lanternas e holofotes a procura do corpo da vítima que viesse a dar nas praias. Cumprindo ordens superiores o comando do Canópus cancelou a viagem de regresso ao Rio de Janeiro e o barco permaneceu por mais três dias na área esperando encontrar o corpo e levá-lo para o continente, o que não aconteceu. Usando das prerrogativas que o cargo lhe confere, o comandante do navio procedeu a uma cerimônia religiosa na popa do navio confiando a Deus a alma do inditoso marinheiro.


Rio de Janeiro

  
Diretoria de Hidrografia e Navegação
            Finalmente a costa do Rio de Janeiro surge no bico de proa do navio. Em marcha lenta o barco avança descortinando os acidentes geográficos por toda a costa. A silhueta da Pedra da Gávea, o Pico do Corcovado e o Pão de Açúcar definiam o gigante adormecido, mostravam a beleza de que estive privado por cinco meses. Por bombordo, na fimbria do horizonte, dava pra ver as Ilhas Cagarras, o Forte de Copacabana e a curva de areias brancas da praia mais conhecida do Brasil, Copacabana. Pela proa, a Ilha Rasa tendo ao fundo a barra do Rio de Janeiro. Na entrada, por bombordo, via-se a Fortaleza da Lage, Enseada de Botafogo, Praia do Flamengo e a Escola Naval. Por boreste, deixamos para trás a Fortaleza de Santa Cruz e a praia de Icaraí em Niterói.

família profundamente triste que não via assomar na escada de descida para terra o seu ente querido que ficou nas profundezas da Ilha da Trindade.  


 Nota. Os fatos relatados foram do período Abril-Agosto de 1978

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