Ilha da Trindade |
No ano de 1976 concluí o curso de
Aperfeiçoamento de Motores e Máquinas Especiais no Centro de Instrução
Almirante Wandenkolk (CIAW), na Ilha das Enxadas e de lá embarquei no Contratorpedeiro
Maranhão, D33 do Primeiro Esquadrão de CTs da Esquadra, o Fita Azul, que ostentava no passadiço, o símbolo ECO Barra, testemunho de sua eficiência
no mar. Foi desse navio que tive a oportunidade de servir na Ilha Trindade como
voluntário isso em 1978, sonho antigo que alimentava desde os tempos de
Grumete. O embarque na Trindade era por um período de cinco meses, sem opção de
dobrar. Fiquei concentrado na Ilha Fiscal, sede da Diretoria de Hidrografia e
Navegação, cerca de dez dias com quinze companheiros recebendo informações com
palestras valiosas como proceder na ilha.
A
Ilha da Trindade é a ultima porção de terra do Brasil a 1140 quilômetros
de Vitória (ES) e a 2400 km
da África; é lá que o Brasil começa, se baseando onde o sol nasce. Em 14 de
Abril 1978 a Corveta Baiana larga do cais da DHN (Diretoria de Hidrografia e
Navegação) conduzindo uma parte da guarnição da Ilha e começa uma viagem de
três dias com o mar grosso e ventos
fortes.
Na corveta encontrei colegas que em outras
oportunidades servimos juntos e, por isso fiz uma viagem tranqüila, porque a
classe de navio me era familiar, pois já havia passado pelas Corvetas: Caboclo,
Purus e Ipiranga. A estima de chegar à Ilha era para as dez horas da manhã do
dia 17 de abril, entretanto, o mar muito picado
concorreu para que o barco fundeasse às quatro horas da tarde. Antes de
conhecer a Ilha eu não fazia idéia de como seria Trindade, mas ao chegar ao ponto
de fundeio (Praia dos Portugueses), diante das rochas e paredões na minha
frente e o tempo frio e nevoento que pairava no local, senti um forte temor.
Aliado a essa apresentação, lembrei-me do que me passaram na DHN quanto ao
desembarque para a praia, que seria por meio de uma Cabrita, nome dado a um pequeno batelão que “pulava” as ondas e que
geralmente virava na arrebentação. Enfim, o desembarque foi feito sem maiores
atropelos. Quando saltei na rampa fui apresentado ao sargento encarregado da Usina
de Eletricidade, que seria a minha incumbência nos próximos cinco meses. O
ambiente era de muito alvoroço e contentamento para os dezesseis homens que
regressariam para o Rio como também para os demais que ficariam com a minha
turma por mais dois meses. O sistema era assim: a metade da guarnição voltava para
o Rio de Janeiro e a outra metade, com dois meses de experiência, ficava com a
nova turma, servindo de guia nos meses seguintes. A rampa na qual se procedia ao desembarque, se alargava em uma
pracinha onde se via uns frondosos pés de Amêndoas e de coqueiros açoitados pelos
ventos constantes.
O Perímetro Habitado
Todas as construções do POIT (Posto
Oceanográfico da Ilha da Trindade) são de madeira que abrigam casas do Comando
e do Imediato, enfermaria e alojamentos, prédio do rancho e estação rádio, casa
de força (Usina Diesel Elétrica), Rádio Sonda (Estação Metereológica) e Carpintaria
que ficam numa faixa estreita de dois quilômetros limitada pela praia e a encosta
dos morros. Quando estive lá em 1978, não existiam casas de alvenaria; todas as
construções eram de madeira. O trânsito entre esses prédios era feito nas
estreitas ruas cimentadas, com pouco mais de um metro e meio de largura. Na
Trindade faltava tudo que tinha em uma cidade do continente, como carros,
lojas, padaria, botecos etc., multidão ansiosa pra chegar a seu destino, postes
e luminosos vendendo a marca de um produto; o grito desvairado do ambulante na
informalidade. Na Trindade o silêncio é tão presente só quebrado com as ondas
se precipitando sobre as pedras na praia.
Nos
primeiros dias já instalados, o Imediato do posto, promoveu uma reunião com os recém-embarcados
e apresentou algumas instruções básicas de como proceder na Ilha, por exemplo: não
se afastar da área habitada sem um companheiro de lado e quando o fizer
informar o destino, levar sempre em seu poder uma peça de cabo, lanterna e faca
de marinheiro. Nunca, sob hipótese alguma, andar descalço na ilha. Um eventual
ferimento em membro da guarnição complicaria bastante a permanência dele no
posto, embora existisse uma enfermaria para atender emergências e pequenas
cirurgias. Em casos mais graves, o socorro teria que vir do continente a 1200 quilômetros.
O comando do POIT
A
presença militar na Ilha da Trindade garante ao Brasil a posse do território
insular. A ilha com pouco mais de oito quilômetros quadrados ocupa uma posição
estratégica no Atlântico Sul. Foi descoberta em 1501 pelo espanhol João da Nova
a serviço da Coroa portuguesa. Foi visitada por celebridades como o capitão James
Cook e o astrônomo Edmund Halley. Pertenceu à Inglaterra, até fins do século
XIX, mas por via diplomática em um Tribunal Internacional,
o Brasil ficou com a posse definitiva de Trindade. O posto tem no comando um
Capitão de Corveta do corpo da armada da Marinha de Guerra do Brasil e como
Imediato, um oficial do corpo médico, sabiamente indicado pelos escalões
superiores da Armada.
Com o advento do ano geofísico
internacional em 1957, nasceu o Posto Oceanográfico da Ilha da Trindade, POIT.
Funciona em sua estrutura uma estação rádio telegráfica – PWH3 – e estação de meteorologia
que coleta dados atmosféricos e os envia diariamente para a DHN.
Primeira Incursão
Os
primeiros dias foram para reconhecimento das instalações e fazer novas
amizades. O barracão do alojamento era dividido em dois compartimentos onde
alojava sargentos e marinheiros e também uma sala de lazer com poucas opções de
entretenimento. O expediente ia das 07h30 às 11h30. Não havia atividades no
período vespertino e cada um escolhia o que melhor fazer.
No meu caso, às 07h30 eu ia para a Casa
de Força com meus dois auxiliares colocar os motores em funcionamento e fazer a
manutenção nos demais equipamentos. O fornecimento de energia ia até às 14h,
voltando a funcionar das 17h às 22h, quando então a ilha ficava as escuras até
o início do expediente no dia seguinte. Era uma medida de economia adotada pelo
comandante uma vez que a nossa cota de óleo diesel era de 5.000 litros até o
próximo abastecimento, sessenta dias depois. Tínhamos na casa de força, uma
câmara fria com capacidade para uma tonelada de carne sendo que as geladeiras
do posto funcionavam a querosene a exemplo dos aquecedores de água para banho. O
rancho funcionava em um barracão vizinho a carpintaria na Praça Nossa Senhora
de Lourdes, padroeira da Ilha. Depois de quinze dias de permanência no posto,
dava para sentir a ausência da vida agitada da cidade. Todo começo de uma cabritada (termo usado para o período
de cinco meses), as refeições são normais tendo em vista o reforço de alimentos
vindo do Rio de Janeiro, mas existia certo controle na distribuição, porque ao
desembarcar na ilha, perde-se no mar boa quantidade de mantimentos ao transpor
a arrebentação. Assim, dias pra frente o rancho perde quantidade e chega-se a
cogitar um racionamento. Na minha cabritada, muita coisa foi tragada pelas
ondas e boa parte que chegou a terra vinha totalmente encharcada de água.
Gruta N. S. de Lourdes
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Completando a nossa missão
exploradora, avançamos morro acima pelas trilhas íngremes até a gruta Nossa
Senhora de Lourdes, beirando a duzentos metros de altitude e, confesso, foi o
ponto que mais me chamou a atenção. A caverna é a maior dentre muitas que
existem na ilha, tem cerca de trinta metros de profundidade e alturas internas
variando de quatro a oito metros. Dentro dela a escuridão é predominante
deixando a todos muito impressionados com o ambiente que se torna solene e
austero, mas aos poucos a gente vai se envolvendo com a paz que envolve aquela
gruta. No seu interior existe um tesouro; nada de baú com colares de pérolas e
moedas de ouro, mas um pequeno acervo histórico como a imagem de Nossa Senhora
de Lourdes e as inscrições feitas nas rochas pelos presos políticos do levante
do forte de 1922. Entre os nomes gravados (pelos próprios) nas rochas está do
então capitão Juarez Távora, militar
do exército figura expressiva da política brasileira por mais de quatro décadas.
Ainda no seu interior, guarda lembranças e mensagens das primeiras guarnições
que passaram pela Ilha: são placas, quadros mensagens desenhadas e escritas e mensagens
de agradecimentos à Santa, guardiã da Ilha por um milagre alcançado. Outra
coisa que chama a atenção do visitante é uma fonte de água límpida que emerge
das frestas das rochas e de sabor inigualável.
A Rotina
Antena da Rádio Sonda
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O tempo passava lentamente naquele inóspito pedaço de terra
no meio do Oceano Atlântico, e seu contingente humano já se ressentia do
isolamento a que estava submetido. Alguns homens se mostravam soturnos,
arredios, enquanto outros com expressões graves e de barbas crescidas não
escondiam a apatia que lhes envolviam. Quando o sol dava lugar ao crepúsculo (hora
do banzo) a nostalgia assomava a todos nós e cada um tinha a sua maneira de viver
àquelas horas tão marcantes. Era o momento de descer ao rancho, e pra chegar lá
saindo do alojamento, seguia-se por uma pequena descida de nome Chora na Rampa.
Jantar simples e cardápio repetitivo mantinham o pequeno grupo no mais completo
mutismo. O silêncio só era quebrado com o encontro de pratos e talheres. Cada
sargento, cabo ou marinheiro naquele jantar singelo, guardava consigo suas preocupações
que ficaram no continente. Quando larguei do Rio Janeiro rumo à Trindade deixei
a minha família; mulher e dois filhos sendo a caçula com três meses de idade. Outros
companheiros também tinham suas preocupações e com isso o ambiente era de
desânimo e de recolhimento. À noite, eu procurava ler o que trouxe do Continente
e rotineiramente anotava o que tinha feito durante o dia. Na sala de lazer,
jogos de salão como Damas, Tênis de Mesa e Xadrez, ajudavam a passar o tempo,
mas o Aliado ( jogo que se pratica com
dados) era o mais procurado isto por ser inventado na Marinha de Guerra. O importante
naquela oportunidade era fazer alguma atividade, manter-se ocupado a exemplo de
Robinson Crusoé do romance de Daniel Defoe, que viveu por muitos anos numa ilha
deserta no mais triste isolamento. Assim
a gente pescava, jogava futebol e fazia caminhadas para ocupar o tempo; até
atividades amenas como trabalhos artesanais e pintura com areias coloridas. A
pintura que me refiro é uma técnica desenvolvida na ilha que consiste em
misturar areia em tinta que depois de seca e peneirada adquire a cor desejada e
daí aplicada com cola em
telas. A
areia preta não passa por esse processo, mas é encontrada In Natura na Praia do EME no noroeste da ilha. A característica
principal da areia preta é que ela é um minério de ferro com forte teor de magnetismo
em sua constituição. Com essas e outras atividades o tempo seguia o seu curso
lento e rotineiro. Um passatempo que se tornou prazeroso era a pesca do Xarel
no local denominado Parcel, distante do Posto cerca de quatro quilômetros. Para
chegar lá era uma verdadeira maratona escalando encostas e blocos de pedras e o
que era mais cansativo, atravessar as areias da Praia das Tartarugas. Éramos um
grupo de cinco pessoas invariavelmente, todas equipadas de anzóis e iscas de
sardinha pescadas na praia da Calheta. A praia do parcel como era conhecida,
não era apropriada ao banho, tinha muitos escolhos de portes variados formando
o nosso pesqueiro um ponto extremamente perigoso. A pesca era proveitosa: entre
peixes de pequeno porte à Xaréus e Garoupas de dez a vinte quilos. Quando a
maré estava cheia, as ondas arrebentavam nos arrecifes com muita violência
obrigando a nós pescadores procurar um lugar mais seguro. Se a ressaca do mar continuava,
o grupo cautelosamente empreendia a volta ao Posto. Nesse lado da ilha fica o Pico
do Paredão com 217 metros
de altura, onde em sua base tem um túnel feito pela natureza com cerca de
quarenta metros de extensão mostrando o mar do outro lado. Esse túnel teria
aproximadamente oito metros de diâmetro.
Na Trindade existem coisas curiosas
dignas de reflexão, especificamente no que diz respeito ao mar com a
aproximação do homem na beira da praia. Certo dia, eu e um companheiro tentamos
dar a volta na base do Paredão aproveitando a maré baixa para ver a saída túnel
do outro lado. O mar estava liso sem ondas, como dizemos um mar espelhado. Da
plataforma onde estávamos para a linha dágua daria sem dúvida dois metros de
altura, e de repente o mar baixou mais ainda e em seguida toda a massa dágua cresceu
chegando a alagar a plataforma onde a gente caminhava. Era como se tivesse vida,
era como quisesse nos arrebatar para suas profundezas. O pavor desmedido foi o
combustível que nos tirou imediatamente daquele lugar. Sem entender aquela mudança abrupta empreendemos
a volta imediata para a nossa base.
Por mais de cinqüenta dias, já
familiarizado com tudo que a Ilha oferecia, o tédio foi cedendo ao otimismo e a
alegria de viver num lugar tão rude e de beleza indomável.
Sou Licença
(Segunda Parte)
No começo de Junho, era grande a
expectativa ante a chegada do navio abastecedor que traria com sua carga principal,
noticias e encomendas dos familiares. A vinda de gente nova era outro fator de
alegria, que dava a gente com mais de sessenta dias reclusos no meio do Oceano
Atlântico. Escusado é dizer do reboliço e contentamento no desembarque da nova
turma. Os novatos vindos do Continente, de traços urbanos, cabelos rentes e de rostos
imberbes, contrastavam com os Insulares de
barbas crescidas e peles trigueiras esbanjando vitalidades já adquiridas do
clima da Ilha. Recebi uma
caixa de madeira contendo cartas, revistas, e um gravador de Fita Cassetete com
uma mensagem gravada de minha esposa. Foi um momento muito alegre saber que
tudo andava bem com os meus lá no Rio de Janeiro.
Quando o
navio largou levando parte da turma que completou quatro meses na Ilha de volta
a terra, a minha Cabritada (turma) assumiu a antiguidade do POIT. É tradição a
vésperas de uma turma retornar para o Continente se fazer uma despedida festiva
com discursos, trocas de presentes, menções de feitos relevantes e para
culminar com o evento, é feita a cerimônia de passagem do Bastão de Comando. O oficial
que deixa a Ilha, solenemente passa o Bastão
Sou Licença ao oficial que fica, e este erguendo o Bastão exclama alto e
bom som:- Eu Sou Licença!
Ironicamente faltando mais de sessenta dias para um navio vir buscar a turma.
Enquanto nós que estávamos ambientados no Posto, enchia de perguntas aos
novatos sobre o Rio, o que aconteceu de vulto na cidade e até notícias do mundo,
em contrapartida os novatos faziam perguntas sobre a Ilha. Naquela época não tinha
Televisão no POIT e o Rádio mal sintonizava uma estação. Somente uma emissora
do Brasil pegava bem durante a noite naqueles confins; a rádio que ficou
célebre no país inteiro quando o locutor com voz empostada anunciava:- Pernambuco falando para o mundo, emissoras...
Aos recém-chegados era passado tudo
que aprendemos nos últimos sessenta dias, assim como ganhamos as experiências
da turma que se foi. Por exemplo, o trato com os caranguejos torna-se uma lição
básica uma vez que eles povoam toda a área habitada. Aos milhares infestam alojamentos,
rancho, carpintaria até gavetas de armários etc., e quem anda pela primeira vez
nos estreitos caminhos do Posto se assusta com aquele imenso tapete de
crustáceos que não se intimidam á nossa passagem. Ensinamos aos novatos que
passar por cima deles é uma questão puramente normal. O aparecimento de
milhares deles ocorre principalmente após um Pirajá que são chuvas inopinadas que caem a partir de maio. Segundo
o chefe da Estação Metereológica do POIT, são as chamadas chuvas orográficas,
ou chuvas de relevo formadas na própria Ilha e que aqui mesmo se precipitam.
Os pontos mais famosos como Praia da
Galheta, das Tartarugas, Praia das Cabritas, do Príncipe e Praia do EME e a
praia dos Portugueses onde fica o POIT, é tudo mencionado para quem chega. È
mencionado também os picos que se destacam na paisagem da Ilha com pouco mais
de 8.3 quilômetros
quadrados abrigando treze montes de expressivas altitudes, um deles passando
dos 600 metros;
o Pico do Desejado o ponto culminante da Trindade.
O Pico do Desejado
Pico do Desejado
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Quando um membro da guarnição está
integrado com os meandros da Ilha passa a encarar desafios mais ousados, a ver
sem temor obstáculos que antes seriam intransponíveis e se aprofundar em pontos
mais difíceis e um desses desafios é chegar ao Pico do Desejado (602m).
Quem passa pelo POIT e não vai ao Teto da
Ilha é o mesmo que ir a Roma e não ver o Papa. È como o lugar mais alto do
pódio em uma competição esportiva. Para
se chegar ao cimo tem que se transpor uma série de trilhas, a maioria delas
apagadas e outras demarcadas com cal, escalar barreiras e escarpas e passar colado
em uma parede que forma o Valadão. Esse trecho é o resultado da erosão que se
formou ao longo do tempo, um rasgo gigantesco no centro da Ilha. Para mim, foi o ponto mais crítico
da caminhada até o topo. A 450
metros de altitude tem-se acesso a uma localidade
conhecida como Cela onde o terreno
forma uma espécie de praça que se apraz a descanso e o mais importante á observação
dos acidentes da Ilha lá embaixo: Morro do Paredão, Praia do Príncipe, Ponta dos
Farilhões, Praia das Tartarugas e bem distante, 40 milhas náuticas a
Leste, o arquipélago de Martim Vaz, tudo visto em pequenas dimensões em virtude
estarmos acima desses acidentes a mais de 400 metros de altitude.
A beleza de tudo lá embaixo é indescritível. Sentados naquela altitude ninguém
se atrevia a falar, bastava ver tudo e se conscientizar que poucas pessoas no
mundo têm o privilégio de estar num universo tão surpreendente. A Subida
prossegue em Zig-Zag serpenteando bases de morros e quando não, praticando
alpinismo amador. O preparo físico foi determinante nessa aventura.
Finalmente alcançamos o Ponto
Culminante da Ilha da Trindade! Exaustos e muito emocionados, exultamos aquela
conquista. Guardando as proporções, é como um montanhista alcançar o Pico da Neblina com 3014 metros de altitude,
o ponto mais alto do Brasil no noroeste do Estado do Amazonas. Ali no topo da
Ilha eu observei a vastidão do Oceano, formando de onde estávamos uma
circunferência colossal. Eu me imaginava o vértice de tudo aquilo. Para deleite
do grupo encontramos naquele ponto uma matinha com plantas e arbustos um espetáculo
de rara beleza. Explorando a área, encontramos as decantadas Samambaias Gigantes
de até seis metros de altura remanescente da flora devastada desde as primeiras
ocupações, e como representante da fauna, proliferavam lá em cima os
caranguejos gigantes (encontrado somente no Desejado) diferente dos crustáceos amarelos
da parte baixa da Ilha. Via-se também no topo de um morro abaixo conhecido como
Fazendinha, um pequeno bando de ariscas Galinhas D’angola popularmente
conhecidas no nordeste brasileiro como Guinés. O nosso grupo teve o privilégio de
assistir a um espetáculo belíssimo de múltiplos Arco-íris lá embaixo encobrindo
a parte habitada, motivado pelo Pirajá
que desabava naquela hora.
Satisfeitos, esbanjando muito
orgulho por ter alcançado o ponto mais famoso da Ilha o grupo desce sem problemas
até o nível do mar. Eu particularmente estava exultante e querendo logo anotar a
Invasão do Desejado.
Curiosidades
Túnel do Paredão
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Com o passar do tempo na Trindade,
tomamos conhecimento de fatos pitorescos e até inimagináveis. Comentando sobre A Rotina fiz referencia ao fenômeno das
águas na praia com a aproximação de uma pessoa notadamente nos lugares ermos
como presenciei na base do morro do paredão onde existe um túnel. Dessa feita me
refiro a Pedra da Garoupa localizada
na Praia do Príncipe. Essa pedra ficou
temida e conhecida pelo triste episódio envolvendo dois membros de guarnição
anterior a nossa, que perderam suas vidas quando pescavam sobre ela, daí estigmatizada
como Pedra da Garoupa. A sua
posição na praia com maré baixa é um convite para subir ao seu topo (3 metros) e jogar a linha
na água. Junto com outros companheiros a curiosidade nos levou até lá. Para chegar à praia do Príncipe onde
fica a pedra, faz-se uma descida de 200 metros em uma encosta de declive acentuado
parecendo mais uma parede e o surpreendente nesse sitio é um cheiro muito forte
de enxofre por toda sua extensão, aliás, essa área se estende ao morro do
paredão onde existem crateras do vulcão extinto. Ficamos na beira dágua observando
as inscrições gravadas na face da gigantesca rocha: duas estrelas e duas cruzes, princípio e fim de dois guardiões do POIT. O
mar estava calmo e as águas chegavam à beira dágua em fluxo e refluxo bem de
mansinho. Absortos, com os olhos grudados na pedra, inesperadamente fomos
surpreendidos por uma carga dágua que nos empurrou para terra firme. Eu
particularmente tive receio de ficar naquele lugar, pois aquilo me lembrava do
que aconteceu na plataforma do Túnel. Outro fato semelhante ocorreu na Praia das
Cabritas no norte da Ilha onde existem piscinas naturais de águas transparentes.
Com a minha proximidade das águas, o mar que estava manso foi aos poucos
aumentando o vai-vem das ondas, e surpreendentemente o local ficou ressacado o
que me fez sair prudentemente daquele lugar. São coisas assim que fazem da
Trindade um lugar surpreendente e fascinante. A
Ilha está plantada naqueles confins a milhões de anos e o contingente humano
que pisou o seu solo em épocas remotas deixou a nefasta marca da devastação de
sua flora. Até parece que esses fortuitos incidentes são uma represália do mar às
guarnições contemporâneas.
Praia das Tartarugas
Carona de Tartaruga
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A Praia das Tartarugas, segundo biólogos,
é um ponto de desova desses quelônios e a Trindade é sempre visitada por elas
deixando cada uma cerca de 130 ovos enterrados na areia. Realmente é a única
praia na ilha que tem uma extensão muito grande de areia. Movidos pela
curiosidade fomos ao local a noite munidos de lanternas e bem agasalhados, uma
vez que fazia frio, mais pela rajada de vento que soprava na hora. Se chegar a
essa praia com a luz do sol era difícil, pior ainda durante uma noite sem lua.
Caminhando em fila indiana, transpomos as barreiras naturais até pisar as
areias fofas do sítio dos quelônios. Acendemos nossas lanternas e varremos o
lugar com fachos de luz. Encontramos
facilmente uma enorme representante acabando de cobrir com areia o buraco onde
tinha deixado seus ovos. Fomos ao seu encontro checar de perto. Era um belo
exemplar de tamanho, e de peso, que teria aproximadamente setenta quilos, a
cabeça e o pescoço de grandes bitolas insinuavam uma tartaruga adulta. Para
tirar fotos foi preciso deixá-la de barriga pra cima até o dia seguinte para
aproveitar a luz do dia. Depois das fotos ajudamos à centenária (?) tartaruga
seguir rumo ao mar deixando atrás dela o rastro sulcado pelas longas
barbatanas.
Caça ao Bode
Quando ainda concentrado na Ilha
Fiscal comentava-se sobre cabritos na Trindade, que viviam em estado selvagem
em alguns pontos e grotões. Sabe-se que esses animais foram deixados pelos portugueses
na tentativa de colonizar a Ilha, mas essa ocupação não durou muito. Para nós
de guarnições contemporâneas, sabemos que na Primeira Guerra Mundial
(1914-1918) a Ilha foi guarnecida Militarmente e esses animais foram levados
para lá e desde então se multiplicaram a ponto de contribuir com a destruição
da flora nativa.
Caça ao Bode
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Quando estive na Ilha em 1978, existiam três
rebanhos em pontos distintos: um para os lados do Pico do Galo, outro na região
central da Ilha e mais um que vinha dos penhascos da praia do príncipe, portanto
na minha época a população dos caprinos estava sob controle. Ariscos por
excelência, entretanto, quando a fome apertava, esses bandos desciam dos morros
a procura de amêndoas e gramíneas, bem perto das casas, mas isso somente tarde
da noite. Um belo dia solicitei do
comandante da Ilha, uma licença para fazer uma caçada. A licença foi dada, mas com uma restrição:
apenas um pente de cinco projéteis.
Combinei com um colega para a noite do dia seguinte a caça ao bode.
O alarme do despertador me pôs de pé ás quatro
horas da manhã, e em cinco minutos eu já descia as escadas do alojamento portando
faca, lanterna, uma boa peça de cabo e um fuzil municiado com um pente de balas. O meu companheiro não trazia
fuzil, apenas lanterna e cabos de manilha como reforço. Enquanto me afastava do
casario a barra do dia surgia no horizonte facilitando assim a minha busca.
Depois de atingir o morro N. S. de Lourdes, fiz uma parada para descanso e ver
o terreno pela frente. O dia já tinha chegado e de repente o meu colega me
chama a atenção apontando para um bando de cabras que distava uns trezentos metros
morro acima. Cautelosamente procuramos abrigo atrás de uma rocha e ficamos
observando seus movimentos. Era um grupo pequeno, em torno de vinte cabeças
lideradas por um bode branco de bom tamanho, que desconfiado levantava a cabeça
olhando para os lados, enquanto os demais indiferentes ao perigo pastavam
sossegados. Entre eles uma cabra com seu filhote ao lado que saltitava a todo
instante não dando descanso às tetas murchas da mãe. Eu tinha pressa em fazer o
ataque porque já estava dia claro e certamente eles arredariam daquele lugar a
qualquer momento. A distância não era problema, mas o cabritinho vez por outra
se interpunha na frente do bode marrom, o meu alvo. Apoiado em uma pedra tomei
a posição de fogo esperando tão somente que o cabritinho saísse da linha de
tiro. O estampido rompeu o silencio, ecoando
nas grotas como se fosse uma concha acústica natural. O bando em desabalada
carreira sumiu no meio de blocos de pedras deixando para trás o bode marrom.
Larguei fuzil e os apetrechos correndo morro acima para não perder de vista
aonde o bode presumivelmente teria sido atingido. Encontrei-o caído cerca de
cinqüenta metros de onde estava com o bando. Era um cabrito velho a julgar
pelos chifres retorcidos e uma carapaça no peitoril onde teria pêlo quando
jovem. Exalava um cheiro forte característico dos machos de sua raça. Amarramos
suas patas e improvisamos com o fuzil uma maneira de transportar o bicho até o
posto. Lá embaixo a curiosidade foi geral. O bode marrom foi o único abatido (só
um tiro) durante a minha cabritada de quatro meses e vinte e três dias.
Tubarão Encalhado
Tubarão no Seco
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Eu estava fazendo a manutenção do motor MWM2, na Casa de
Força, trocando os filtros de combustível, e de óleo lubrificante e ajustando a
correia da bomba dágua, quando soou um grito do lado de fora da minha
incumbência; esse grito vinha da Praia da Calheta. Deixei os filtros em uma
bancada, e caminhando com pressa assomei a rua deparando com um colega que
vinha da praia gesticulando dando conta de que algo estava acontecendo.
Chegando à praia vi uma cena inusitada, aonde dois marinheiros lutavam
bravamente com um tubarão que enlouquecido tentava voltar à água após ter
encalhado nas areias da Calheta. Juntei-me ao pequeno grupo e com auxilio de um
pedaço de ferro e uma enxada atacamos o tubarão, que mesmo fora do seu elemento
oferecia um grande risco ao debater-se ferozmente. Outro marinheiro reforçou, o
nosso grupo com um cabo de nylon e com isso laçando a cauda da fera tirando-o o
quanto antes da beira dágua.
A explicação para o encalhe é que
ele perseguia um cardume de sardinhas que sem saída chegou às águas rasas e ao
transpor a arrebentação o Tubarão Lixa (?) com a barriga na areia não teve como
voltar para o mar aberto. Aliado a sua falta de sorte, ainda foi empurrado para
a praia por uma grande onda que vinha atrás dele. O acontecimento chamou a
atenção de todos, pois a praia da Calheta fica no perímetro habitado, e logo se
formou um grande circulo de gente em torno dele. Tinha cerca de noventa quilos nos seus dois
metros e quinze centímetros de comprimento. Foi fotografado antes de ser
cortado em postas graúdas. O nosso Imediato, o doutor Portugal um médico de
renome na marinha brasileira, que vivia recluso na sua casa cercado de pilhas
de livros científicos, quebrou sua própria rotina se misturando aos curiosos e
de pronto fazendo um pedido, próprio de um homem de ciência: pediu ao Magarefe de ocasião que tirasse com
cuidado o cérebro do peixe, e sendo atendido voltou para sua casa para estudar
os miolos do Lixa. E a gente naquele
fim de mundo não sabia que estava entre nós um dos maiores nomes do corpo
médico da Marinha Brasileira.
Jornal do Dia
Campo de Futebol
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Faltando pouco mais de um mês para o fim da comissão, fomos
surpreendidos por um acontecimento jamais esperado, mesmo porque estávamos a 1140 quilômetros
do continente. Naquela tarde, formamos
um pequeno grupo e mais uma vez tomamos o caminho da praia do Parcel pescar o Xarel,
pois era o peixe que mais aparecia naquele pesqueiro. De repente um som muito
estranho foi surgindo e aumentando em nossa direção e custava acreditar que
seria de avião. Eu no momento, pego de surpresa, pensei tratar-se de uma
avalanche porque dias antes tinha acontecido nas encostas da praia das
Tartarugas um deslizamento de enormes blocos de pedras originando um violento
estrondo. Assustados, paramos e com os olhos pregados no céu vimos três
pontinhos à baixa altitude em nossa direção.
Estávamos atravessando o campo de futebol na praia dos Andradas. Os três pontos em poucos instantes tomaram forma de três aviões voando baixo passando sobre nossas cabeças a uma velocidade espantosa desviando do morro pela frente tomando o caminho de volta a Ilha. A correria foi geral, cada um se abrigou como pôde no descampado das laterais do campo; o marujo que trazia a lata cheia de sardinhas tropeçou nas pedras a sua frente derramando pelo chão todas as preciosas iscas. Outro marujo mais assustado corre na direção da Base, o terceiro pensando tratar-se de um ataque aéreo deitou-se no chão protegendo os ouvidos com as mãos em conchas. Foi quando surgiu outro avião dessa vez voando mais baixo deixando cair no centro do campo um fardo volumoso que lembrava uma bomba, mas aí deu para ver que se tratava de um avião da FAB e que talvez estivesse deixando uma carga para o POIT. Acorremos ao pacote levando-o até ao comando. Realmente era uma esquadrilha da FAB de passagem pela Ilha cumprimentando o Posto, e deixando para nós livros, revistas e Jornais do dia da cidade de Vitória-ES. Incrível! Jornal do dia naquele fim de mundo. Foi um grande momento que atingiu a todos indistintamente, do mais moderno ao Comandante. Lembro-me que a ultima leitura atualizada que fiz de um jornal, passava dos noventa dias, justamente quando saí do Rio de Janeiro. Imagino que nos dias de hoje, exista na ilha antenas parabólicas, televisão de ultima geração e os imprescindíveis telefones celulares.
Olimpoit
Olimpoit
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O exemplo das
Olimpíadas no continente inspirou as autoridades da Marinha a promover na
Trindade a OLIMPOIT, (Olimpíadas do
POIT). Com participação de toda
a guarnição, afinal de contas o destacamento com pouco mais de trinta pessoas
foi possível distribuir as modalidades esportivas com muito sucesso. As
competições nos jogos coletivos não eram simultâneas; quando terminava uma
prova os mesmos atletas formavam outras equipes em outras modalidades. Assim,
teve jogos de futebol, voleibol, uma corrida de dois quilômetros jogos de salão
e o famoso cabo de guerra. Os jogos foram muito disputados, mas o número de
torcedores é que chama a atenção pela reduzida quantidade de gente, basta ver
que duas equipes de futebol de campo empregam setenta e cinco por cento de todo
o destacamento, mas nem por isso deixou de ser alegre e muito divertida. A
Olimpoit foi um sucesso, transcorreu em um clima de camaradagem e com a predominante
disciplina que norteia os militares.
Ilha isolada
A
Ilha da Trindade, pela sua posição geográfica no Oceano Atlântico, está fora de
rota de navios e aviões. Separada da costa de Vitória-ES (1140 km), a distancia faz
da ilha a porção de terra mais isolada do Brasil. Assim, são raros os casos de
navios que aportam em suas águas ou aeronaves que entrem em seu espaço aéreo,
exceto os navios da marinha de guerra que fazem abastecimento do Posto
Oceanográfico a cada sessenta dias. Em casos especiais, com permissão da
marinha, a ilha recebe visitas de biólogos, universitários e cientistas com
propósitos definidos de suas áreas de atuação.
Entretanto,
casos esporádicos levam navios perdidos à ilha como aconteceu no mês de julho
com um yate que saiu da Inglaterra com destino a América do Sul, mas enfrentou
três dias de calmaria e empurrado pelas correntes marinhas deu com os costados
nas águas de Trindade.
Era
uma manhã de sábado quando foi visto um alvo no horizonte. Toda a guarnição em
pontos diversos da base procurava se certificar o que delineava o limite da
ilha, uma vez que as nuvens baixas dificultavam a identificação da inesperada
visita. Hora e meia depois deu para
ver que se tratava de uma pequena embarcação e que aparentava ter problemas
para chegar a enseada. O comandante do POIT deu ordens para alguns homens
ocupar pontos estratégicos na praia, no sentido de orientar com semáforas e
bandeirolas o yate que fundeou muito longe da rampa. Via-se que foi arriado um
pequeno bote A medida tomada visava salvaguardar dois tripulantes da pequena
embarcação que se aproximava da praia. O mar estava bravo, e na arrebentação se
formavam grandes ondas que revolviam o fundo do mar cheio de ouriço. Tentamos
mostrar para os visitantes por meio de sinais o perigo que os esperava no fundo
da praia. . O pequeno bote se aproximava da arrebentação; eu e mais três
companheiros com água pela cintura e guarnecidos de bóias, esperamos o pequeno
bote transpor o ponto crítico, formador de ondas. Não teve como evitar que o
bote virasse jogando seus ocupantes na água. Convém dizer que cada um de nós
estava ligado a terra por meio de um cabo de segurança, pois corríamos o risco
de ser arrastados pelas ondas. Um dos homens do bote ao cair na água, demorou
vir à tona, e nesse momento eu arremessei a bóia circular em sua direção.
Demorou uns quinze segundos para o visitante emergir das águas respirando
avidamente o ar que reencontrou na tona. Desesperado, agarrou a bóia com tal
firmeza que nada no mundo o faria largar dela naquela hora. A turma de terra
mantinha esticado o cabo que me dava suporte na operação. Agarrei o homem pelo
colete salva vida e deixei que o pessoal da retaguarda nos arrastasse para a
areia. O outro visitante passou pelo mesmo problema, visivelmente atordoado e
demonstrando que tinha rolado pelo fundo coberto de ouriço do mar
No
ambulatório, o enfermeiro fazia curativo nos dois gringos que estavam com os
corpos e pés em petição de miséria, o que confirmou nossas suspeitas de que
vinham descalços. Relataram para o comandante que faziam uma viagem de recreio
da Inglaterra para a América do Sul e que no trajeto entraram em uma zona de
calmaria por mais de três dias e que o motor de bordo estava com problemas
mecânicos. Levados por correntes marítimas chegaram até a ilha brasileira.
Desorientados e com problemas de suprimentos, a costa da ilha foi uma dádiva
para eles. O comando do POIT prestou assistência em todos os sentidos, como
suprimentos, assistência médica e orientação náutica fornecendo uma derrota segura para a costa de cabo
frio.
Volta pra casa
Em meados de
agosto, começaram os preparativos para voltar ao Rio de Janeiro. Muita coisa
tinha que ser feita para embalar o material adquirido na Ilha. Existia uma
norma que regulava a saída de material, como exemplo: peças de bronze retirado
do casco soçobrado do CTE-Beberibe que encalhou em 1966 na Praia dos
Portugueses, transporte de animais vivos como cabritos porcos e galinha como
também pedras exóticas, areia imantada, etc. A organização do Posto construiu
um carangueijal para toda a guarnição e cada homem tinha o seu próprio. Em
confinamento e bem alimentados os caranguejos amarelos ganhavam peso naquelas
gaiolas. Era assegurado para cada homem o direito a três caixotes de madeira
para levar o que bem entendesse da Ilha. Fora dos caixotes só com permissão
especial, no caso bodes, porcos e galinhas (encarregados da pocilga e da granja
Eliane). Eu particularmente ocupei as minhas caixas assim: Uma contendo pedras
esculpidas pela natureza, um cantil com água da fonte da Santa e areia imantada
da praia do EME, outra contendo peixe salgado e a terceira caixa, uma centena
de caranguejos. O movimento nos alojamentos e nas incumbências era de notória
euforia, o semblante de cada homem mudava física e psicologicamente da noite
para o dia. A maioria tinha tirado a barba e cortado o cabelo. A expectativa
naquelas horas era com a chegada do navio que a qualquer momento ia surgir no
horizonte.
NHI-Canópus
NHI-Canópus
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Em 20 de Agosto de 1978 o navio hidrográfico Canópus
fundeou na enseada dos portugueses trazendo mantimentos e uma nova turma que ia
ficar no nosso lugar por quatro meses. Contendo a emoção de voltar para casa
depois de quatro meses, fiz um balanço da minha estada na ilha desde o primeiro
dia quando desci na rampa no mês de abril. Fiquei conhecendo os grandes
acontecimentos que envolveram guarnições anteriores, e os fatos relevantes da
história da Ilha: Portugueses, Ingleses, caçadores de tesouros, as ocupações
militares presídio político, Ano Geofísico Internacional em 1957,
quando se instalou em definitivo o Posto Oceanográfico da Ilha da Trindade, POIT.
Relembrei também o fato de que a Ilha foi visitada por OVNIS em 1958 que causou
um reboliço muito grande na imprensa brasileira. Tudo passava como um filme: Vasculhei
um bom pedaço do solo entre morros e beira de praias, pescando, caçando,
jogando bola e boa parte do tempo na minha incumbência fazendo a manutenção dos
equipamentos. A gruta N.S. de Lourdes, Praia do Príncipe e a pedra da Garoupa;
a escalada do Pico do Desejado foram momentos marcantes que ficarão para sempre
na minha memória, como também os dias de isolamento de trabalho e apreensão, e
de esperar a qualquer momento a ilha ser sacudida por um abalo sísmico. Isso
depois de um deslizamento de blocos
de pedras nas encostas da praia das tartarugas.
Finalmente, depois
de cento e vinte dias fiquei fora da ilha, quero dizer, via a ilha de um ângulo
longe dela, de bordo do navio que me levaria de volta ao continente. A sensação era de muita ansiedade, muita
alegria, era a sensação do dever cumprido. Passar por muitos obstáculos,
conviver com o perigo lado a lado vinte quatro horas por dia e sair daquele
lugar ileso.
O
embarque no NHI Canópus se fez pela Cabrita,
aquela pequena embarcação que pulava
as ondas. O transbordo do pessoal da Ilha para o navio foi feito em três etapas
até o ultimo homem.
A
guarnição do Canópus, muito receptiva, nos acomodou mostrando as dependências
do navio: cobertas, sala de refeições, banheiros e demais compartimentos,
facilitando assim nossa convivência a bordo para os próximos três dias até o
Rio de Janeiro. Cumprindo um cronograma de viagem, o navio sem perda de tempo
inicia os procedimentos para largar após o cerimonial à bandeira. O sol,
alinhado com o horizonte, se escondia na curva da terra deixando a Ilha no
crepúsculo vespertino.
Como
era de se esperar, encontrei um amigo a bordo, o Segundo Sargento, Paulo
Tavares de Miranda, parceiro de outras comissões: CIAW, Base Naval de Natal,
Corveta Caboclo, da extinta Forpacone, (Força Patrulha Costeira do Nordeste).
Na sala de refeições, botamos a conversa em dia enquanto aguardava a saída do
jantar e de repente ecoou uma mensagem no fonoclama nos termos bastante
familiar para mim:- Guarnecer Detalhe
Especial Para o Mar, (DEM). Acostumado com tudo aquilo, eu sabia que em
seguida a guarnição ocuparia seus postos- chaves como: timoneiro no passadiço,
condutores motoristas nas praças de máquinas e principalmente a faxina do mestre na proa para suspender
o ferro. (âncora).
Não demorou muito e um estalo forte estremeceu
o navio, que da sala de refeições onde estávamos, deu para ouvir que um cabo de
aço tinha se partido no convés. Passaria até despercebido uma pancada em meio a
uma faina geral, entretanto a gritaria que se seguiu de ordens desconexas, deu
para entender que algo muito grave tinha acontecido. O Tavares e eu acompanhamos
toda aquela gente que passava pelo corredor que dá acesso ao convés principal. Lá,
ficamos sabendo que um marinheiro da guarnição do navio tinha caído no mar na
manobra de içar (subir) a lancha para o seu berço no convés. Um membro da
equipe de mergulhadores ainda pulou na água na ânsia de salvar o inditoso
marujo que em poucos segundos depois da queda no mar, lançou o ultimo grito de
sua vida: - valei-me nossa senhora! Uma máscara de terror cobriu os rostos de
quem estava na faina. O navio já ia se movimentar com suas potentes hélices quando
o predador implacável, a fera mais terrível dos oceanos (tubarão) puxou para o
fundo do mar o bravo marujo da guarnição do Canópus. Muita gente na popa olhava
para as águas na esperança de vê-lo boiando, entretanto já estava escuro, não
dava mais para enxergar naquelas condições. O fato foi comunicado a Diretoria
de Hidrografia e Navegação-DHN- órgão da marinha a que está subordinado o POIT.
Na ilha, já informada do acidente, foi criado grupos de homens munidos de lanternas
e holofotes a procura do corpo da vítima que viesse a dar nas praias. Cumprindo
ordens superiores o comando do Canópus cancelou a viagem de regresso ao Rio de
Janeiro e o barco permaneceu por mais três dias na área esperando encontrar o
corpo e levá-lo para o continente, o que não aconteceu. Usando das
prerrogativas que o cargo lhe confere, o comandante do navio procedeu a uma
cerimônia religiosa na popa do navio confiando a Deus a alma do inditoso
marinheiro.
Rio de Janeiro
Diretoria de Hidrografia e Navegação
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Finalmente
a costa do Rio de Janeiro surge no bico de proa do navio. Em marcha lenta o
barco avança descortinando os acidentes geográficos por toda a costa. A
silhueta da Pedra da Gávea, o Pico do Corcovado e o Pão de Açúcar definiam o
gigante adormecido, mostravam a beleza de que estive privado por cinco meses.
Por bombordo, na fimbria do horizonte, dava pra ver as Ilhas Cagarras, o Forte
de Copacabana e a curva de areias brancas da praia mais conhecida do Brasil,
Copacabana. Pela proa, a Ilha Rasa tendo ao fundo a barra do Rio de Janeiro. Na
entrada, por bombordo, via-se a Fortaleza da Lage, Enseada de Botafogo, Praia
do Flamengo e a Escola Naval. Por boreste, deixamos para trás a Fortaleza de
Santa Cruz e a praia de Icaraí em Niterói.
família profundamente triste que
não via assomar na escada de descida para terra o seu ente querido que ficou
nas profundezas da Ilha da Trindade.
Nota. Os fatos relatados foram do período Abril-Agosto de 1978
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