A Rotina
O tempo passava lentamente naquele inóspito pedaço de terra
no meio do Oceano Atlântico, e seu contingente humano já se ressentia do
isolamento a que estava submetido. Alguns homens se mostravam soturnos,
arredios, enquanto outros com expressões graves e de barbas crescidas não
escondiam a apatia que lhes envolviam. Quando o sol dava lugar ao crepúsculo (hora
do banzo) a nostalgia assomava a todos nós e cada um tinha a sua maneira de viver
àquelas horas tão marcantes. Era o momento de descer ao rancho, e pra chegar lá
saindo do alojamento, seguia-se por uma pequena descida de nome Chora na Rampa.
Jantar simples e cardápio repetitivo mantinham o pequeno grupo no mais completo
mutismo. O silêncio só era quebrado com o encontro de pratos e talheres. Cada
sargento, cabo ou marinheiro naquele jantar singelo, guardava consigo suas preocupações
que ficaram no continente. Quando larguei do Rio Janeiro rumo à Trindade deixei
a minha família; mulher e dois filhos sendo a caçula com três meses de idade. Outros
companheiros também tinham suas preocupações e com isso o ambiente era de
desânimo e de recolhimento. À noite, eu procurava ler o que trouxe do Continente
e rotineiramente anotava o que tinha feito durante o dia. Na sala de lazer,
jogos de salão como Damas, Tênis de Mesa e Xadrez, ajudavam a passar o tempo,
mas o Aliado ( jogo que se pratica com
dados) era o mais procurado isto por ser inventado na Marinha de Guerra. O importante
naquela oportunidade era fazer alguma atividade, manter-se ocupado a exemplo de
Robinson Crusoé do romance de Daniel Defoe, que viveu por muitos anos numa ilha
deserta no mais triste isolamento. Assim
a gente pescava, jogava futebol e fazia caminhadas para ocupar o tempo; até
atividades amenas como trabalhos artesanais e pintura com areias coloridas. A
pintura que me refiro é uma técnica desenvolvida na ilha que consiste em
misturar areia em tinta que depois de seca e peneirada adquire a cor desejada e
daí aplicada com cola em
telas. A
areia preta não passa por esse processo, mas é encontrada In Natura na Praia do EME no noroeste da ilha. A característica
principal da areia preta é que ela é um minério de ferro com forte teor de magnetismo
em sua constituição. Com essas e outras atividades o tempo seguia o seu curso
lento e rotineiro. Um passatempo que se tornou prazeroso era a pesca do Xarel
no local denominado Parcel, distante do Posto cerca de quatro quilômetros. Para
chegar lá era uma verdadeira maratona escalando encostas e blocos de pedras e o
que era mais cansativo, atravessar as areias da Praia das Tartarugas. Éramos um
grupo de cinco pessoas invariavelmente, todas equipadas de anzóis e iscas de
sardinha pescadas na praia da Calheta. A praia do parcel como era conhecida,
não era apropriada ao banho, tinha muitos escolhos de portes variados formando
o nosso pesqueiro um ponto extremamente perigoso. A pesca era proveitosa: entre
peixes de pequeno porte à Xaréus e Garoupas de dez a vinte quilos. Quando a
maré estava cheia, as ondas arrebentavam nos arrecifes com muita violência
obrigando a nós pescadores procurar um lugar mais seguro. Se a ressaca do mar continuava,
o grupo cautelosamente empreendia a volta ao Posto. Nesse lado da ilha fica o Pico
do Paredão com 217 metros
de altura, onde em sua base tem um túnel feito pela natureza com cerca de
quarenta metros de extensão mostrando o mar do outro lado. Esse túnel teria
aproximadamente oito metros de diâmetro.
Na Trindade existem coisas curiosas
dignas de reflexão, especificamente no que diz respeito ao mar com a
aproximação do homem na beira da praia. Certo dia, eu e um companheiro tentamos
dar a volta na base do Paredão aproveitando a maré baixa para ver a saída túnel
do outro lado. O mar estava liso sem ondas, como dizemos um mar espelhado. Da
plataforma onde estávamos para a linha dágua daria sem dúvida dois metros de
altura, e de repente o mar baixou mais ainda e em seguida toda a massa dágua cresceu
chegando a alagar a plataforma onde a gente caminhava. Era como se tivesse vida,
era como quisesse nos arrebatar para suas profundezas. O pavor desmedido foi o
combustível que nos tirou imediatamente daquele lugar. Sem entender aquela mudança abrupta empreendemos
a volta imediata para a nossa base.
Por mais de cinqüenta dias, já
familiarizado com tudo que a Ilha oferecia, o tédio foi cedendo ao otimismo e a
alegria de viver num lugar tão rude e de beleza indomável.
Sou Licença
(Segunda Parte)
No começo de Junho, era grande a
expectativa ante a chegada do navio abastecedor que traria com sua carga principal,
noticias e encomendas dos familiares. A vinda de gente nova era outro fator de
alegria, que dava a gente com mais de sessenta dias reclusos no meio do Oceano
Atlântico. Escusado é dizer do reboliço e contentamento no desembarque da nova
turma. Os novatos vindos do Continente, de traços urbanos, cabelos rentes e de rostos
imberbes, contrastavam com os Insulares de
barbas crescidas e peles trigueiras esbanjando vitalidades já adquiridas do
clima da Ilha. Recebi uma
caixa de madeira contendo cartas, revistas, e um gravador de Fita k7 com
uma mensagem gravada de minha esposa. Foi um momento muito alegre saber que
tudo andava bem com os meus lá no Rio de Janeiro.
Quando o
navio largou levando parte da turma que completou quatro meses na Ilha de volta
a terra, a minha Cabritada (turma) assumiu a antiguidade do POIT. É tradição a
vésperas de uma turma retornar para o Continente se fazer uma despedida festiva
com discursos, trocas de presentes, menções de feitos relevantes e para
culminar com o evento, é feita a cerimônia de passagem do Bastão de Comando. O oficial
que deixa a Ilha, solenemente passa o Bastão
Sou Licença ao oficial que fica, e este erguendo o Bastão exclama alto e
bom som:- Eu Sou Licença!
Ironicamente faltando mais de sessenta dias para um navio vir buscar a turma.
Enquanto nós que estávamos ambientados no Posto, enchia de perguntas aos
novatos sobre o Rio, o que aconteceu de vulto na cidade e até notícias do mundo,
em contrapartida os novatos faziam perguntas sobre a Ilha. Naquela época não tinha
Televisão no POIT e o Rádio mal sintonizava uma estação. Somente uma emissora
do Brasil pegava bem durante a noite naqueles confins; a rádio que ficou
célebre no país inteiro quando o locutor com voz empostada anunciava:- Pernambuco falando para o mundo, emissoras...
Aos recém-chegados era passado tudo
que aprendemos nos últimos sessenta dias, assim como ganhamos as experiências
da turma que se foi. Por exemplo, o trato com os caranguejos torna-se uma lição
básica uma vez que eles povoam toda a área habitada. Aos milhares infestam alojamentos,
rancho, carpintaria até gavetas de armários etc., e quem anda pela primeira vez
nos estreitos caminhos do Posto se assusta com aquele imenso tapete de
crustáceos que não se intimidam á nossa passagem. Ensinamos aos novatos que
passar por cima deles é uma questão puramente normal. O aparecimento de
milhares deles ocorre principalmente após um Pirajá que são chuvas inopinadas que caem a partir de maio. Segundo
o chefe da Estação Metereológica do POIT, são as chamadas chuvas orográficas,
ou chuvas de relevo formadas na própria Ilha e que aqui mesmo se precipitam.
Os pontos mais famosos como Praia da
Galheta, das Tartarugas, Praia das Cabritas, do Príncipe e Praia do EME e a
praia dos Portugueses onde fica o POIT, é tudo mencionado para quem chega. È
mencionado também os picos que se destacam na paisagem da Ilha com pouco mais
de 8.3 quilômetros
quadrados abrigando treze montes de expressivas altitudes, um deles passando
dos 600 metros;
o Pico do Desejado o ponto culminante da Trindade.
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