LANCHA BRASIL-I
O meu embarque
na Marinha Mercante (Navegação de Cabotagem) ocorreu em 15 de Agosto de 1987.
Foi um momento muito esperado, mas de pequena duração motivado por um grave
acidente com a Lancha Brasil-I (Foto
01), na saída da barra do porto de Guamaré, RN. Quando fui para a reserva da
Marinha de Guerra em 1985, eu tinha um objetivo de só embarcar novamente depois
de dois anos de aposentadoria. Era como eu mesmo dizia para os amigos, tirar
uma grande folga longe do mar. Entretanto, um ano depois de vestir o pijama, senti
falta da vida agitada que o mar proporcionava e procurei contatos com o pessoal
da Capitania dos Portos para me habilitar a tirar a carteira (concurso) de
Condutor Motorista. De posse dessa carteira, embarquei na Lancha Brasil-I da Delba Navegação Ltda.
Lancha Brasil I
Construída
sob encomenda em estaleiro no Ceará, a embarcação tinha características
próprias para dar apoio às plataformas da região Nordeste, precisamente em
águas rasas. Medindo cerca de trinta metros de comprimento e de fundo chato, a
lancha não lembrava nada os imponentes navios da Marinha onde servi por muitos
anos. Fui apresentado a bordo pelo subgerente da empresa que trazia consigo
documentos da lancha e suplemento de rancho. Nessa mesma tarde ele voltou para
a base da Delba em Natal. Percorri o
navio de proa a popa me surpreendendo com o tamanho das acomodações e
mentalmente fazia comparações com os últimos navios da marinha que tinha
servido por mais de vinte anos: Rebocador Almte. Guilhem 65 metros,
Contratorpedeiro Maranhão 115 e Cruzador Barroso com 183 metros de comprimento
total. Apesar das comparações, achei a minha nova embarcação bem cuidada e que
minha adaptação seria rápida.
No dia
seguinte, o barco recebeu carga geral e largou do cais na maré às 10h30min.
Descendo o Rio Aratuá, a lancha abria vista por bombordo para a Praia do
Presídio com suas casinhas de madeira. Por boreste, uma visão ampla dos
manguezais abundantes da região, interrompida por um Furo (espaço de um afluente) que acessa ao atracadouro da Salina Amarra Negra. Deixando pela popa
o farol de Galinhos, a lancha mergulha no mar aberto ao campo de Ubarana. Era
essa a missão da Brasil-I, transportar carga geral e translado de pessoal para
as plataformas marítimas naquela área.
Depois de
trinta dias de entrada e saída da barra de Guamaré, eu já conhecia todos os
movimentos do barco quanto ao conteúdo da carga, o destino das entregas nas
plataformas e jaquetas e particularmente as curvas do Rio Aratuá; sabia até
onde começava os primeiros balanços da embarcação, isso depois de ultrapassar a
quarta bóia rumo ao mar.
Estávamos no
mês de agosto e fazia um calor terrível na cidade de Guamaré com seus 10.000
habitantes, calor esse aliviado por lufadas esporádicas de ventos vindas da
costa. No pátio de manobras da Petrobras, o movimento de carretas, empilhadeiras
e guindastes era grande. Estavam atracados no cais três rebocadores e duas
lanchas. A estiva se virava arrumando as cargas e empilhando Pallets de sal no
convés de um rebocador.
CARGA PERIGOSA
Na minha
cabine, eu fazia anotações pondo em dia o mapa de manutenção da máquina. Faltava
uma hora para o barco largar do cais. Assim, fui à praça de máquinas ultimar os
preparativos para o funcionamento dos motores (GM), verificando a água, óleo, ar
comprimido e realizar o procedimento da pré-lubrificação dos MCPs. No convés,
eu observei a carga que íamos levar para a área. Afora pequenas caixas e
malotes, o grosso do material era somente tubos de perfuração. Era uma grande
quantidade dessas varas de nove metros de comprimento, com diâmetro aproximado
de três polegadas. Seriam umas trezentas unidades empilhadas no convés de ferro
da embarcação que para o seu porte era uma carga considerável.
Às 13h30min,
os cabos de amarração são liberados e o comandante da Brasil-I manobra em
marcha lenta descendo o sinuoso rio com os tubos de ferro. Como eu sempre fazia
na saída do porto, me postei na porta do rancho virado para a popa observando a
carga. A lancha descia suavemente, como se estivesse em um lago. Depois da
quarta bóia surgiam as primeiras marolas vindas do mar. O rio se alargava na
medida em que o barco avançava e sempre desviando os bancos de areia que são
muitos naquela barra. Um fato me chamou a atenção: verifiquei que os canos se
acomodavam nas curvas com o aumento dos balanços da embarcação. Fiquei atento e
não mais tirei os olhos do monte de ferro na minha frente, devido à proximidade
do mar.
A Virada
A pequena
cidade sumiu atrás das dunas que margeiam o Rio Aratuá. O cheiro forte de
maresia indicava que estávamos perto da saída da barra. Eu já me segurava no
corrimão da antepara por causa dos fortes sacolejos da pequena lancha. De
repente, a embarcação mergulhou em uma
vaga e os tubos de ferro tilintaram uns sobre os outros sobrepondo- se a
boreste (lado direito). Lépido, saí daquele marasmo e fui avisar ao comandante que
a carga ia Correr. No tijupá, conduzindo o barco com muita
perícia, o Mestre de Cabotagem mal
ouviu o meu grito. A pequena Lancha Brasil-I
tombou para boreste levando toda carga, saindo do seu centro de gravidade e
permanecendo nessa incômoda posição com uma das hélices fora dágua, cavitando. Zé Brito, o comandante, foi
arremessado para a borda do navio, mas não largou o timão. Eu também caí para o
mesmo bordo, e desorientado me agarrei no degrau da escada do mastro. Para
entender a situação: tudo que estava na horizontal ficou na vertical. Portanto,
tive que me arrastar como um réptil até a borda e me apoiar em cima do costado
que antes ficava mergulhado na água. Os demais membros da tripulação estavam na
mesma posição, grudados no casco da lancha. Foi um momento apavorante, o medo
tomou conta de todos nós, pois o barco estava prestes a emborcar. Grudado nas
chapas de ferro que formavam o costado, a minha preocupação era com o impacto
das grandes ondas que batiam sucessivamente em toda extensão da lancha. Pensei
em me jogar no mar ao ver uma grande onda se formando a barlavento. O
comandante, exasperado, gritou para alguém guarnecer o rádio e fazer uma
chamada de emergência enquanto governava a lancha praticamente deitado no piso
do tijupá. Arrastei-me até o suporte do rádio que estava na freqüência de
espera, canal 16, e fiz uma chamada geral para toda a área. Segurando
firmemente a balaustrada esperei o impacto da grande onda que poderia emborcar
a nossa embarcação. Não me lembro de se sentia medo naquela hora. Estava sim,
muito tenso, pensando tão somente em me jogar na água no momento certo. Caiu a
grande onda no pequeno convés da Brasil-I estremecendo toda aquela massa de
ferro. A pancada foi tão violenta que o barco quase volta a sua posição normal
de flutuação. Uma cortina de água caiu sobre nós. O balanço provocado pelo
impacto quase me arremessou para as águas turbulentas da costa de Galinhos. Não
tardou chegar resposta de terra ao nosso chamado. Era da base da Petrobras em
Guamaré, solicitando detalhes e mais informações do que estava ocorrendo:
- Brasil-I, SETRAMA,
(setor de transporte marítimo): “o que ‘tá’
pegando?”.
- SETRAMA, Brasil-I:
“estamos nas imediações da bóia de
espera, a carga correu e a lancha virou. Estamos com um eixo fora dágua, precisamos
de socorro urgente!”.
O que era uma
tarde ensolarada com ventos moderados virou para tempo nublado com ares de
borrasca. A experiência de Zé Brito fez a diferença lutando valentemente no timão
para aproar a embarcação no rumo do Porto. Só que a lancha não respondia ao
comando por conta de um dos lemes estar fora d’água.
A espera do
socorro prometido era exasperante, mas uma nova chamada do SETRAMA dava conta de que a Lancha Parnaíba que estava operando em
Ubarana vinha nos socorrer. Vinte minutos depois, o socorro chega a nossa proa.
O diálogo entre os dois comandantes foi sucinto:
-Vou passar um cabo pela sua proa, em seguida
rebocá-lo até o porto!
– O outro
responde, Pode arremessar!
Epílogo
O porto de
Guamaré estava apinhado de gente: funcionários da Petrobras, seguranças do
pátio de manobras e todo o pessoal da estiva a espera da lancha que chegava com
o casco fora dágua mostrando a hélice de bombordo no seco. Dentro do rio não
tinha mais balanço e logo que atracou, descemos para terra obviamente sendo
alvo de perguntas. A estiva deu início à retirada dos tubos. A cada lote de
tubos içado pelos guindastes, a lancha retomava o seu ponto normal de flutuação.
Evidentemente que a Petrobras queria saber por que a lancha virou e o que havia
de errado com a carga.
Reunidos no
escritório do SETRAMA, o comandante da lancha, o gerente da Delba Navegação
Ltda. e o encarregado da Petrobras chegaram à conclusão que os tubos sobre o
convés de ferro sem um anti derrapante fatalmente acarretaria em problemas com
o desarrumo de carga em mar agitado. O acidente poderia ter sido evitado se a
carga dessa natureza fosse peada com correntes e bem distribuída sobre o
convés.
Entende-se
que um fato como esse é passível de discussão para tão somente aumentar a
segurança dos equipamentos e, principalmente, a segurança das vidas envolvidas
no processo.
Mario,
ResponderExcluirVocê sabe informar se esse comandante "Zé Brito" se trata do Ex-Comandante Vicente de Brito Miranda, natural de Guamaré/RN mesmo?