Um fato
interessante aconteceu na CV. Purus com o navio atracado no porto de Salvador,
BA isso em 1969. É que os oficiais iam
dar um jantar para uns amigos do Iate Clube de Salvador e que terminou numa
tremenda lambança. Aliás, nem teve começo porque o elemento principal da festança
virou esqueleto. Era um dia normal, quando a rotina foi alterada no final do
expediente. A guarnição foi liberada mais cedo e instruídos os marujos que estavam
a bordo para evitar o convés principal em uniforme de faxina. O Gestor e o “Fiel” de bordo entabularam conversas sobre o suprimento para o
evento, pois seria um jantar diferenciado. O cozinheiro chefe, cabo Pepino, de
vasta experiência em navios de elite e mesmo em restaurantes civis, era peça
fundamental, pois das mãos dele sairia um prato considerado uma obra de arte.
Seria um robalo ao forno regado a vinho branco e uma série de truques para o
prato ficar mais saboroso.
O
rancho para a guarnição saiu no horário normal e boa parte do pessoal estava a
bordo salvo, alguns heróis que
vagueavam pela cidade preenchendo horas para retornar ao navio. Nesse contexto,
dois marujos com pouco dinheiro nos bolsos tomavam um cafezinho requentado numa
birosca da cidade alta, quando um deles comentou: - é bom a gente voltar pra
bordo e tentar chegar na hora do rancho - ah, o Picado já saiu há muito tempo, quem sabe o mestre cuca deixou alguma
coisa pra nós retardatários, retrucou o outro. É de conhecimento da marujada o
fosso que separa os oficiais das Praças-de-Pré.
Originalmente pelo RDM (Regulamento
Disciplinar da Marinha) vigente, como também pela cultura histórica herdada
da Marinha Imperial aonde os oficiais vinham das classes aristocráticas da
sociedade. Qualquer evento no seio da oficialidade passava até mesmo
despercebido entre nós marinheiros. Tudo muito natural. Para um simples jantar,
criava-se uma atmosfera de poder e ostentação; acionava-se o mestre do navio
para arrumar a escada do Portaló colocando
as sanefas com o monogramo da CV. Purus
mantinha-se o cozinheiro de sobreaviso assim como o despenseiro, cabo Remanso
e o encarregado do Ar Condicionado (no caso o autor deste relato). A minha
participação na historia era manter uma temperatura agradável nos camarotes e Praça D’armas. Escusado é dizer que no portaló, o pessoal de serviço envergava
o uniforme branco. Lá pras sete horas o cozinheiro fez mais uma vistoria nos
pratos que tinha preparado: saladas frias, canapés, bolinhos de atum e em uma travessa
Wolf
aonde jazia um lindo Robalo. Sim, era um Robalo de uns três quilos deitado no
centro da travessa com um olho esbugalhado, mas cercado de tiras de pimentão,
rodelas de tomate e pequenas lascas de azeitonas pretas. Mal comparando,
parecia um defunto no velório com o caixão aberto rodeado de flores. Satisfeito
com a inspeção o mestre cuca colocou a travessa no forno para manter o peixe
quente e mandou para a copa que ficava no piso superior contígua a Praça D’armas, as entradas e canapés e
em seguida desceu para sua Coberta (Alojamento) descansar até ser chamado para tirar o
jantar. Na copa o despenseiro se comunicava com a Praça D’armas por uma portinhola. Vinho Rosé tâmaras, passas e tudo pronto, tudo nos conformes.
Descendo a
ladeira do Taboão um MN-QSM a passos
largos dizia pra si: - acho que perdi o Rango,
mas quem sabe ainda dá tempo. E olhava aflito para o relógio que trazia no
pulso. Na cidade baixa na confluência da
ladeira do Julião com uma pracinha o marujo alcança os colegas que enganaram as
barrigas com os cafezinhos requentados, e foi logo falando: - e aí, companheiro,
perdemos o Rango? Dali prosseguiu o
grupo em direção ao cais em marcha batida.
No
interior do barco a maioria do pessoal nas suas cobertas lendo alguma revista,
outros deitados e alguns cochilando, reinava a mais completa calma e
tranqüilidade. A festança seria ás dez horas e já às nove horas chega o
primeiro convidado acompanhado de uma linda jovem bem maquiada, de um vestido
vaporoso. O Contramestre atento manda o Ronda
avisar na Praça D! Armas a
presença do convidado. Chega um Tenente que se aproxima do casal com um sorriso
largo e cheio de Mesuras a dizer - vamos entrando e virando a cabeça para trás,
diz para o Contramestre - muita atenção no serviço, heim! Claro que o pessoal
do Portaló ajudaria as Madames a
subir a escada do navio.
Os
três retardatários entraram na cozinha pelo acesso de popa e sem muito trabalho
viram que do rancho das cinco horas restara pouca coisa. Sobre uma das chapas
do fogão uma terrina de alumínio tinha resto de arroz, duas Macas
Ferradas, (bife muito popular nos navios de marinha) e uma porção
de purê que mal dava para um homem. O cozinheiro dormia tranqüilo porque na
hora certa seria chamado para Arrumar
o Robalo. Mais dois convidados e três garotas subiram a bordo. Na Praça D’Armas
em Avant-premiére degustavam–se vinhos
e canapés, iscas de camarão e outros salgados. O vozerio que no início era
discreto já se tornava mais acalorado. Mas o que importava mesmo era a opinião
do dono da festinha: - dos frutos do mar o peixe ao forno é uma das melhores iguarias,
vocês vão ver! Às dez horas, o mais
antigo faz um sinal ao Gestor que como um mestre de cerimônia diz aos presentes
que o jantar vai ser servido, e sai em direção à copa para avisar ao Despenseiro. Este, incontinente desce
dois lances de escada e já na coberta diz para o cozinheiro: – está na hora! O Chief concorda e segue rumo à cozinha.
Na Praça D’armas o clima é de descontração e uma das garotas antes comedida já
ensaiava uma continência com um quepe esquecido em um divan. Claro que a jovem
tomou uns drinks, não lembrava quantos. E o Despenseiro na copa se virava com
os frios, vinhos, travessas, talheres
de peixe etc. e olhava de soslaio para o pequeno elevador que traria a travessa
com o Robalo. Uma ruga de preocupação vincou sua face quando o tenente veio ao
seu encontro perguntando pelo peixe. Remanso pede calma e diz que vai até lá
embaixo verificar, mas o oficial foi junto com ele. Desceram a escada e
entraram na cozinha ao mesmo tempo e depararam com uma cena terrível. O
cozinheiro estático com os olhos arregalados balbuciou qualquer coisa como:-
comeram o Robalo! O tenente e o Remanso estupefatos grasnaram – Nãooo! A situação ficou preta, a coisa degringolou, o
tenente com medo de dizer para comandante, não sabia o que fazer e com os olhos
cravados no Chief dizia:- e esse peixe que está nessa travessa, eu estou vendo ele
inteiro. O cozinheiro contendo o ódio mostrou para o oficial o estrago feito no
peixe. Com ajuda de uma espátula virou o Robalo para o outro lado e aí o
tenente vendo que ali era só o esqueleto, começou a suar em bicas. Com um medo
danado de dar a notícia lá em cima, ficou verde ao ouvir a suas costas a voz de
um emissário vindo da Praça D’armas:-
o que é que está Pegando? O homem com
um trejeito na boca fixou o oficial que fez a pergunta e balbuciou: - comeram o
Robalo! Diga-se de passagem, mas os autores da façanha de comer o Robalo pela
metade fizeram a coisa bem feita, pois o peixe foi dissecado com a precisão
cirúrgica de um perito de medicina legal. As espinhas arqueadas todas inteiras
lembrava com fidelidade o cavername de um Yole.
Comentários à parte o certo é que o rolo foi lá pra cima e o bicho pegou mesmo.
Dez minutos depois da fatídica
descoberta, os convidados começaram a sair de bordo decepcionados e uma hora
mais tarde, desabou a terrível reação. Uma verdadeira Tisuname. A guarnição é despertada debaixo de apito e voz para
formar na popa. Muita gente pensava tratar-se de um socorro marítimo, posto de
combate ou mesmo um grande incêndio a apagar, pois pelo adiantado da hora só um
bom motivo justificaria o inopinado Reunir
Geral. Era uma cena bizarra ver aqueles homens concentrados na popa do
navio, muitos com caras de sono a escutar a preleção e a exposição dos fatos. O
próprio comandante falou grosso firme e determinado: - o responsável pela
violação do pescado que se apresente! E foi dado um prazo de vinte minutos caso
contrário a licença para terra seria suspensa por prazo indeterminado. A ameaça de CANA anunciada na ocasião seria sumária e pesada. E o que era de se
esperar ninguém se apresentou nem mesmo dedurou. A coisa ficou assim por uns
dias até que a lembrança do Robalo se esvaiu na poeira do tempo.
Fato acontecido em 1969
mariomonteirobu@uol.com.br
Lindo texto!
ResponderExcluirCasos de Marinha na sua interpretação está um sucesso...estou de camarote só curtindo as trapalhadas da velha guarda. rsrsrsrsrs.
Parabéns Mário Monteiro.
Olá Sr Mário, Meu pai com certeza estava na viagem a Portugal ele era o 2º Sargento ET Arnoud Silveira.
ResponderExcluirInfelizmente ele já é falecido, quando criança fui algumas vezes ao Cruzador Barroso era meu passeio favorito!
Atualmente sou oficial do Exército engenheiro militar - Eletrônica especializado em RADAR devido a alguma influencia do meu pai.
Grande abraço ao senhor e sua família.
Arnaud