Um “Pastor Alemão” embarcado

Leão o mascote
A praia estava cheia, o movimento de
gente, crianças, adultos e jovens em roupas de banho compunham um ambiente
característico de fim de semana em
Itapoã. A turma do navio, cerca de quinze homens,
destacava-se dos banhistas por praticar uma improvisada pelada com uma bola de
borracha. A alegria reinava no meio daqueles homens que pareciam crianças.
Quando a bola caia na água, o jogo parava até que ela retornasse a areia
trazida por um cão enorme que se juntou ao grupo. O cão muito alegre não
largava a turma de marinheiros ora pulando e brincando, trazia pedaços de
madeira, bola, tudo que se jogava na água. Notava-se que o animal estava à
procura de companhia para brincar, pois parecia perdido, sem dono. No fim da
tarde a marujada encerra as brincadeiras e retorna para o ônibus em demanda do
navio. O mais antigo confere o pessoal e dá ordem ao motorista para
largar quando olha para a porta do coletivo e vê o cachorro entrando no salão,
com um palmo de língua de fora farejando cada um dos marujos demonstrando
extrema alegria. O mais antigo indaga à
turma de quem seria aquele cachorro, quem era o dono e fez gesto de enxotá-lo
do ônibus, mas a galera não gostou e entraram em consenso e levaram o belo
animal para bordo. O cão era um Pastor Alemão de porte acima da média aparentando um ano de idade e ser muito
dócil e saudável. Diante de tanta evidencia via-se que o cachorro era bem
cuidado e que certamente teria dono, mas ninguém ligou pra isso e adentraram no
navio com o bicho que foi efusivamente recebido pela outra turma que estava a
bordo. Leão como foi batizado farejava tudo que encontrava pela frente no interior do navio.
Estranhou de início o sobe e desce de escadas, mas foi logo se adaptando e de
receber tantos afagos já era intimo de toda guarnição. Quando o comandante
tomou conhecimento do cachorro no navio, mandou chamar o mais antigo para saber o
que tinha acontecido. O sargento explicou o que realmente aconteceu e disse que
na hora de voltar para bordo ninguém na praia reclamou a posse do animal. Sem
mais conversa, o cão ganhou nome e status de Mascote de Bordo. Providências
foram tomadas como vacina antirrábica, vermífugo e carrapaticida, além de justa
mordomia com alimentação de bordo e ração balanceada.
Semanas se foram e o navio passou o
Serviço de Socorro Marítimo para outra corveta e largou do cais de Salvador com
destino a cidade do Rio de Janeiro levando em seu bojo o cachorro adotado. Com
isso, a mascote de bordo a exemplo da guarnição somava também milhas navegadas
e dias de mar. Um fato interessante foi observado por todos do navio com
relação a Leão, quando o barco entrou na baia da Guanabara. O animal sentiu
cheiro de terra por que sentiu a viagem de dois dias literalmente fora do seu
convívio e com isso ficou bastante ansioso, mas ao descer no cais, resolveu o problema
que tanto o importunava desde a saída de salvador: fez bastante xixi e claro a
outra vertente fisiológica. Assim, o tempo passava e cada vez mais, Leão
conquistava a galera; todo compartimento do navio ele fuçava ora nas cobertas
de cabos e sargentos, ora na coberta de proa e no convés principal na popa onde
ele mais gostava de ficar. Quando o toque de Reunir Getal ecoava no Fonoclama, Leão
corria para a popa e ficava comportado no meio do pessoal e dava a impressão
que se ligava na leitura do Plano do Dia.
O bom filho a casa
retorna
Depois
de noventa dias fora de sua sede, a Corveta Purus cruza a barra de Natal e
desliza suavemente nas águas mansas do rio Potengi para atracar no Píer da Base
Naval. No cais, familiares da marujada aguardavam sorridentes seus pais, maridos
e namorados depois de longa jornada fora de casa. Um cordão de isolamento
mantinha esses familiares a uma distância segura do navio, observado por uma
escolta de fuzileiros navais com seus uniformes impecáveis. Lentamente, o navio
se encostava ao cais e as primeiras retinidas arremessadas de bordo eram
colhidas no cais pelo pessoal da base, que dava apoio na atracação do barco.
Depois dos procedimentos oficiais, a guarnição era liberada a descer ao cais e
cenas comoventes eram observadas naqueles instantes. Tudo era alegria, e as crianças
agarradas no pescoço dos pais não davam brecha para que as mamães matassem a saudade
naqueles breves momentos.
E o nosso Leão
considerado da casa nem de longe
pensava em seu antigo lar. O canto onde vivia tinha tudo que um cão gostava:
comida com ração especial, muita gente para brincar e acima de tudo era a Mascote de Bordo.
O pessoal da base e navios da Força ali sediados acorria ao navio e de
pronto faziam perguntas; como chegou ao navio, quem era o dono, etc. – puxa que
cachorro bonito, é uma graça, - deve ter custado uma nota, não? Mas, Leão
não era apenas um cachorro bonito e um grande come-dorme, não. Leão ajudava
a puxar cabos, vigiava o cais contra gatos vadios que tentavam subir a prancha do
navio e o mais importante de tudo: latia forte no Porta ló ante a aproximação de estranhos. É aí que a galera mais
prezava principalmente os cabos de quarto que nos horários de Zero
Hora as Quatro indubitavelmente
cochilavam em serviço. A
corveta em Natal fora de serviço entrou em PNR (Período Normal de Reparos) e
daí os necessários reparos nas máquinas nos compartimentos, enfim na parte de marinha-ria foram feitos para que o navio voltasse a operar novamente. Terminado
os reparos, fez viagens de abastecimento ao então Território Federal de
Fernando de Noronha, patrulha marítima na costa nordeste e uma estada em Belém
do Pará. Oito meses se passaram e o navio de volta a Bahia atraca novamente no
cais de Salvador, reiniciando a rotina fora da sede. Um adepto de passeios buzinou para mim que já estava na hora de pedir
um ônibus e dar uma passada na praia, mas eu argumentei que o encarregado dos
esportes logo, logo vai entrar em contato com a Capitania e brevemente o ônibus
estaria a nossa disposição. Numa manhã de sábado encosta no cais um ônibus da
prefeitura de Salvador a disposição do navio. A galera muito animada dizia:-
Leão vai rever o seu pedaço, - será que ele vai
reconhecer o lugar? Olha, os mais precavidos achavam que voltar a Itapoã era
uma temeridade, outros achavam que depois de oito meses nem Leão se lembraria
do lugar nem tampouco teria alguém a reclamar a sua posse. A chegada à praia
foi tranquila sem surpresas. As brincadeiras com bola e objetos atirados na água
deixavam Leão feliz da vida. Pronto, a turma se imiscuía em várias atividades,
cada um ia curtir a sua maneira: um grupo investia em cerveja na barraca
colorida, outro grupo partia resoluto para uma barraca de acarajé Pilotada
por uma opulenta baiana de tez grafite onde vendia seus quindins. Leão entre um
grupo e outro provava de acarajé e dava umas lambidas num copo de cerveja na
beirada da mesa. Precedendo a volta para o navio à turma sentada na areia nem
ligou para um cidadão de cabelos grisalhos que se acercou de todos e apontando
para o cachorro falou: - Dick, Dick! O marujo mais próximo do cachorro
agarrou-se ao pescoço de Leão e tomando a direção do ônibus, pronunciou: vamos pessoal,
esse cidadão não sabe o que diz. O homem insistiu, Dick! Dick! E o pobre do animal olhava para a
marujada que pronunciava bem alto o nome Leão, Leão! Nessa hora o instinto
amigo superou o chamado dos marinheiros e em poucos segundos, num arranque
canino, leão parte para o homem de cabelos grisalhos, levanta as patas e
ganindo frenético lambe o seu legítimo dono depois de um longo tempo sem o seu
carinho. A alegria do cachorro era tanta em cima do cidadão que a galera de
bordo atônita aceitava a incontestável posse de (agora Dick) Leão para o seu
proprietário. Nesse momento, qualquer chamado por parte dos marinheiros o
cachorro nem atendia e, como um cordeiro acompanhou o senhor em direção ao seu antigo
convívio. Escusado é dizer que o sentimento de perda foi enorme e profundamente
frustrante para todo o navio. Durante os oito meses embarcado o pastor alemão
visitou os portos do Rio de Janeiro, Salvador, Recife, Natal Fernando de
Noronha e Belém do Pará. Navegou cerca de 3.000 milhas marítimas
e carimbou
os postes de tudo quanto é cais, exceto Fernando de Noronha que não descia a
terra. O desenlace do caso do Leão não foi nada agradável, mas certamente que
ficou nos anais de Casos de Marinha.
Natal, 28/11/2006